Subi hoje no SoundCloud (ouvir aqui) um trabalho em áudio que fiz em 2016 e, até então, não havia compartilhado.
Já há algum tempo, eu me alimento de restos, de sobras, de cadáveres de livros para compor peças de poesia expandida. São quadros, performances em áudio e vídeo, colagens em papel, livros de artista, processo iniciado aí por 2013, 2014, e que vem me acompanhando.
O nascimento desse processo veio enquanto eu fazia graduação em Artes Visuais no CEART/UDESC, mesmo espaço onde fiz estágio de pós-doc, logo após a minha defesa de tese em literatura, e onde tive as primeiras experiências como professora universitária (na área de linguagem pictórica).
Desde então, esse trabalho com os livros de artista se desenvolveu e, nos últimos meses, ganhou um amadurecimento através da escrita de ensaios especulativos nos quais venho tecendo ideias a partir de um conjunto grande de leituras e experiências criativas vividas durante os vinte meses do meu sabático (vividos entre 2023 e 2024).
Revisitei trabalhos e, observando-os em conjunto, percebi como cada um vem contribuir, à sua maneira, na investigação conceitual dessa poética. Muita coisa que não entrou nas exposições realizadas durante o estágio de pós-doc, nem no livro Entre o vento e o peso da página (vide página acima), observadas dentro do cenário político atual, ganharam seu espaço nessa segunda fase da pesquisa. Subi vídeos de performances (última página do menu) os quais, antes da publicação de Não alimente a escritora e das situações decorrentes (comentarei a fase 2024 do "game" em outro texto) não entrariam nesse novo conjunto, mas foram resgatados de sua quase-finalização, arrematados e, agora, compartilhados publicamente.
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A recolha dos livros-lixo e a desleitura
Uma rápida olhadela na capa (quando há) é suficiente para perceber se ele poderia ser adicionado a outros títulos igualmente adquiridos em sebos ou (literalmente) retirados do lixo e que formam uma pequena coleção da qual disponho por despeito ou desrespeito.
Entre eles está, por exemplo, The way to become the sensous woman e também ME-109: o caça magistral, um livro de autoajuda cor-de-rosa dos anos 60 e o outro um elogio de um avião utilizado na Segunda Guerra Mundial. Há também os fascículos da História Universal e de mitologia que trazem apenas referências à História da Europa, e o recorte em relação às mitologias é eurocentrado. Há os que exaltam as qualidades de invasores opressores (heróis bandeirantes, “descobrimentos” do Brasil...). Há didáticos, volumes de enciclopédia despedaçados, velhos livros com ortografias desatualizadas, mapas contendo a ex-URSS, dicionários impressos abandonados e um verdadeiro festival de misoginia.
Foram editados,
lidos, comprados, propagandeados, e figuram hoje em sebos na condição de
quase dejetos.
Assusta-me saber que foram dispendidos recursos naturais valiosos para a sua publicação, ao mesmo tempo em que me diverte saber que posso dar a esses volumes outro destino, já que a sua função como livros já não existe.
São livros mortos.
Meus deslivros
Alguns, por
exemplo, foram utilizados como cabeças para uma boneca chamada Página. Outros
se transformaram em novos livros.
Um deles teve suas margens
costuradas e não pode ser aberto.
Outro foi
arremessado ao chão e dele sobraram páginas quase avulsas.
O
preço de M.
convidava-me a deslê-lo com urgência e viver essa ação como um ímpeto do corpo.
Assim, dele restaram
resíduos de movimentos repetidos, que moram em áudios, restos de capa, pedaços
de papel, palavras novamente livres para significar o que quer que os
intervalos entre elas significam. E nunca mais um corpo poderá desfolhear ao menos
esse exemplar. O que, da sua livricidade, restou, quer ser semente de um mundo
com mais livros e menos misoginia.