Desconjunto


Desconjunto foi publicado pelo Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul, através de seu programa de edições, em 2002, com projeto gráfico de Marco Cena e prefácio de Jane Tutikian.










Em parceria com a atriz e iluminadora Carina Sehn, surgiu Poiesis-desconjunto, um trabalho híbrido entre poesia e teatro, que estreou em 2001 no Teatro de Arena/Porto Alegre. Fizemos nova temporada no ano seguinte, quando o livro foi lançado, e participamos da Feira do Livro daquele ano com o espetáculo. Nossa ideia era criar um ambiente, através dos recursos do teatro, que recuperasse a atmosfera sutil de antes da escrita, uma espécie de aprofundamento nas sugestões imagéticas dos poemas. Os figurinos foram criados por Cristiano Lenhardt e a maquiagem foi de Paula Lix. Um único objeto cênico, um cordão feito de retalhos e crochê, circulava de mão em mão, promovendo a interação do público na cena.













Ali
onde o mato alimenta-se de temores
guardo meus inventos, façanhas.
Façamos as escolhas: a rua faiscante corta os olhos
onde elaquela namora os tropeços e os trovões.
Moedas a desabitam
a engolir suor.
Enrolou-se na saia vermelha, mora em segundo andar.
Eu cá preferi um mistério dentro
              em negror
                       de mato.
            Coelhos caçoadas
            grilos morcegos: cada qual canta a seu jeito.
Às vezes reúno a orquestra
para mostrar minha nova invenção:
invento do medo do arbusto calabouço.
As folhas imensas eu resguardo. Deito-me. À noite chorei:
meu travesseiro eram pó de pó de vento.
Caibo em cada parte onde escolho um tamanho
a brincadeira é costurar cadáveres.
Agora é olhar as fotos: vejo ela com feridas na perna
a equilibrar sapatos de agonia.
Então estou melhor: visto quinquilharias da mata
e a cada dia invento outra
outra canção.
Então grilos morcegos
caçoadas
arranjos: abelhas ao fundo

um piano, no bordel.









Do som da palavra
      ao som do sentido: ler ouvindo

o cantar que não existe

  − ainda não existe

Passar os olhos sobre um papel líquido
  − sólido!
  − líquido!

Líquido e cheio de artimanhas, virando papel-gelatina
que aí sim
não escorre já.

As palavras antes ainda escorriam líquidas
molhavam pílulas e
estancavam jorros em pétala.

Mas hoje            
 adensaram-se
             mudaram de cara
                                              casa
                     cabelos
      Foi-se a água.

De cacho em cacho o nó se adensa:
− adestra-se? Vira coisa e pelos: ente.

Então música vibrante de cordas
masturbação
arcos
A palavra vira som
e fúria

Sentindo-se assim nua a palavra se
completa

 Faz giros de borboleta.

 Voavaga vaga lume.

          Ela luzeiro: luzerna contra a proa do navio.





No silêncio negro das árvores
no mato além / desmembrado
em fulgores de folhas que estalam
por baixo de pés errôneos
errantes

cinzas barulhos chinelos e cheiros

Todos os bichos gemem
e não conseguem dormir
esperando
a hora solitária
em que a mata será penetrada
por fantasmas em carne viva

Eles fumarão cigarros escondidos
dançarão ao redor de chamas
depois espantarão demônios

E voltando ao urbano macio
deixarão as corujas arregaladas
com seu merecido sono








da música saíram palavras, fonemas interligando: gestos, pele, êxtase e muito, muito cansaço morno.

os dois dormiam. entrelaçavam pernas e pêlos giravam, gritavam encaracolados pelo: pescoço vênus ânus. em anéis de cabelos respiravam adormecidos.

entrementes o mundo onde imundícies escorrem habitava: esgotos fossas fósseis livros arquitetura suja no centro da cidade. e imagens que bem poderiam ser estilizadas por pincéis cubistas.

cabiam os dois numa caixa, cubo, de silêncio e náusea. não levantavam. era sempre o depois da música gestos êxtase vênus arquitetura viva de corpos.

[nas noites sempre: música cabelos entrelaçados pernas girantes organicidade de ânus cheiros peles]

eles sempre muito, muito cansados mornos. tudo era noite.
o mundo escorria pelas fossas máquinas dentes de dragão no centro da cidade. para o mundo era sempre dia.

dentes de dragão penetram um cubo de vidro e silêncio. pelos cabelos encaracolados, pelas entrelaçadas pernas escorrem: esgotos fósseis centro da cidade.


pelo cubo não passa nenhum pincel cubista.








         Seria mais de meia-noite
haveria livros pelo chão
todos abertos:

ela abre a página
mói o livro
joga o livro −

e vem sentar-te ao meu lado, Lídia

− ela vigia o branco
pelos espaços de folhas
entre linhas tão correlacionadas

ela saboreia relações, depois:
joga.

Joga fora
no chão acarpetado
do apartamento, joga e ri.

E vem sentar-te à minha frente, Lídia
não sou tão máquina
que não possa causar
no teu ventre
um espasmo cheio de palavras




Sarau Cênico



Performance teatral junto ao grupo de pesquisa Laboratório de Atuação, que tinha sede nos espaços do Hospital Psiquiátrico São Pedro.
O Sarau Cênico fazia um percurso dentro dos espaços do Hospital, sem divisão entre palco e plateia.


Performei um poema de Desconjunto sobre uma cama de parto pertencente ao espaço.
Sarau    Cênico 2004


por onde desce o filho morno-quente-queimando? escorrega? demora pra sair. de onde vem a carne mole rósea água que será sexo, que será músculos, roubos? por onde vai o filho novo-velho que ora revém resendo o sendo, sexto empírico, o corte cordão.

vem tudo do umbigo. da música.

dói pra sair. quem é essa esponja por entre a qual as coisas saem entram envenenam, depois separam-se sugam
sugam aquecem por vezes?

coisas com reflexos espasmos depois pérolas frias: os olhos em adeus. eu vou estou indo, cético sexto abstrato, agora longe névoa, diferente.

ser aquilo pelo qual a coisa jorra brota cheira? fraudada pelas núpcias, fraldas, palavras amenas sempre má.
macbeth.

ser com bandeira?
adélia na floresta sabia que era, que erra ela, com vestido branco pés assim sóbria e ressabiada. ser com medo dos bichos da floresta, muda quebradiça entre os cem mil ruídos, sussurros.

paninhos e lençóis sujos. imunda de sangue, fértil! como carregar bandeira?