domingo, 20 de setembro de 2020




 

 

Uma mulher

sozinha no apartamento.

 

No frio do carpete sujo

que aquece os pés,

nua. Completamente nua,

sentada,

olhos que se evolam

pelas paredes,

vitrais do quarto.

 

O computador faz ruídos, às vezes.

 

É esquia e magra:

vazia

é tia, avó, irmã, sem nexo.

 

Está nua e só frente às máquinas.

Não há faunos. Florestas foram

concatenadas

no seu pensamento.

 

Em que pensa uma mulher

sem cajados

sem vestido branco

na brancura da pele lisa?

 

Seria mais de meia-noite

e haveria livros pelo chão,

todos abertos:

 

ela abre a página,

mói o livro

joga o livro −

 

e vem sentar-te ao meu lado, Lídia.

 

− Ela vigia o branco

pelos espaços de folhas

entre linhas tão correlacionadas.

 

Ela saboreia relações, depois:

joga.

 

Joga fora,

no chão acarpetado

do apartamento,

joga e ri.

 

E vem sentar-te

à minha frente, Lídia

não sou tão máquina

que não possa causar

no teu ventre

um espasmo cheio de palavras.

 

* primeiro poema do Desconjunto.






 

Um cálice eterno  − eternas férias.


Voos de percevejo

por debaixo dos colchões.

 

Areia movediça

em sons e fúrias do sono

sob os pés que abrasam, no peito,

o vexame de ter dito améns.

 

Etéreo milho

estalando por entre os joelhos

que ainda com os pés me pisam

no sono-verdade dos tempos

 

em tempos, se abrindo e fechando,

matéria noturna das horas.

Pelas paredes, tudo pesa,

 

a malemolência dos minutos

desgasta-se em sons, fulminando figuras

de baratas amarelas entre cartas

nadando

no pó

 

ora líquido

dos passados.

 

E os sentidos, não invento − espreguiço.



*poema do livro Desconjunto, de 2002, revisto em uma manhã de domingo, em 2020.

sábado, 12 de setembro de 2020



eu fiz um colar de estrelas com as cordas do baixo acústico, e ressoavam na sala durante as tardes intermináveis dos meus vinte anos. fiz um vigésimo de segundo, sussurrando estrelas ao som dos meus vácuos, e vi, assim, um sussurro estrangeiro se desfazer nas rusgas do momento em que me vesti, colar, colo, coisa à toda como a presença das estrelas no meu peito, miasmas, minúsculos de momentos distendidos, como a luz nos cadafalsos.

e correntes elétricas estrelaram meus dentros feitos de esquemas e de listas de constelações escondidas dentro das suas calças. como circunstâncias encaçapadas nesses momentos nos quais espocam as luzes de dentro dos seus olhos, como cismas de cachoeiras. a gargantilha das marcas da sua língua no meu desejo constela como coisa à toa nas esquinas que rebrilho entre nós dois. e esses olhos, os seus, que me sugam por dentro, desatinam de estrela sobre os prédios dos quais me jogo para o centro do seu peito que se despede.
seu peito inerte para os meus desejos trama o tempero das quedas.
*
*
*
fiz esse poema, que não pude revisar, em uma noite de sexta (ou seria quinta?), sentada, a sós, no Tralharia, ao som de um jazz, quase verão. e quem diria que as cordas continuariam, agora que o bar fechou, soando como gongos aflitos, no meio dessas madrugadas em que não se pode sentar para escrever em um bar? um dos meus receios, ao me tornar professora, era o de ser flagrada constantemente nessa condição, que era ainda mais frequente quando morava em POA: a de procurar o burburinho das gentes, para me concentrar. eu gosto do ruído rosa que se forma ao som dos risos de um lugar lotado. escrevi meu réquiem para Roberto Piva num lugar assim, mas bem pé-sujo, como deveria ser, dada a minha pobreza. agora brindo ao espírito mundano no meio da quarentena monja: que o poema nos traga, aos tragos de Maiakóvski, um pouco de futuro, de brisa, ou de baixo acústico.








A foto da pintura não é pintura; e a própria pintura vive em mim do poema, apenas. O que o poema declara, a mancha de tinta desdeclara, com um certo cinismo e dor nas costas. Mas o que desdeclara o poema, o que é que dispara nas circunvoluções da mente, o que ele dança, onde faz pausa? Essa pintura, no fundo, é música, composta a partir dos ecos de um trompete reverberando a infância, quando o pai espalhava seus agudos pela vizinhança. E percute os gritos das crianças, cada martelada da perene construção ao lado da casa onde vivo, no final de uma rua meio mal calçada, no Campeche, onde os aviões às vezes passam, às vezes pausam.



 

terça-feira, 1 de setembro de 2020



 

Subimos as escadas
do farol
para ver a paisagem.
Os leões
ficaram lá embaixo,
fazem xixi amarelo.
Ouvimos os seus gritos
soados
na era dos dinossauros.
Sua pele combina
com as pedras
manchadas em alguns pontos
onde os leões
se aninham, nojentos.
Eu, você, sua pele combina
com o rugido dos bichos,
seus cabelos
se enredam
ao pé do vento
onde subimos,
para ver a paisagem.
Você já viu tudo, e senta
no último degrau, me espera
como uma criança
enquanto faço as fotos
que você nunca verá.
Sua face, assim, sentado
combina com o farol, no topo:
você combina o tempo todo
com esse medo de cair
se me alongo mais um pouco
para fazer um close
no leão lá embaixo, um porco
que urra e de repente é você
que solta a gosma da boca
enquanto se move, um vagar,
e se ajusta na outra pedra.
Você e esse leão, tão amigos,
já viram tudo, já fizeram
tudo o que quiseram
comigo,
já mijaram no vento amarelo,
dormiram no ponto
onde o sol se põe
e vocês combinam, sim,
já combinaram
de me ver cair,
o leão marinho
e você,
meu urso,
um urso apenas
de passagem.

C