Lugares ogros



O romance Lugares ogros foi publicado em 2019 pela Caiaponte, através de um financiamento coletivo promovido pelo escritor Marcelo Labes para viabilizar a criação da editora, sediada em Florianópolis.

Para comprar o livro, acesse:
https://caiaponte.wordpress.com/catalogo/lugares-ogros-de-telma-scherer/





Tenho um plano para hoje. Incluí você, mas não se preocupe. Quero que relaxe, e possa esquecer o seu tédio, o apartamento pequeno e cheio de ruídos, as dores comezinhas que sempre importunam as leituras, mas que hoje talvez. E talvez é suficiente. Quero que você conheça certas esquinas, só nós dois, muito antes de surgir a mulher de vermelho. É pra isso que estou aqui. E, não sei se você faz ideia, mas foi um trabalho intenso até chegar a este ponto. Logo me apresentarei melhor, número de identidade, endereço e CPF, porém não tenha dúvidas de que sou uma personagem sã, sim, mulher honesta, bem criada e tudo mais. Não, não tenha medo, são apenas nossos passos. Iremos rápido, temos tantas páginas, e ainda assim logo tudo estará acabado, Jorge e eu e ela, e meu velho, e minha amiga, ainda nem começou.
     Você não pode argumentar que desconhece, não foi avisado, ninguém lhe convidou. Veja, este segundo parágrafo é desconhecido? Diga-me se está ignoto em alguma parte do prédio cinza a que chamam lar ou cérebro. Você já leu o primeiro, e não foi rápido, agora que passou? Nós subiremos juntos, e não precisamos nem mesmo de manuais ou de instruções sobre como subir uma escada. São poucos degraus, agora. A princípio só três, na descida; depois outros, na subida, mas venha.
     Você não precisa conhecer de cor Todos os Mestres da Literatura. Talvez nem tenha que abrir o dicionário, e “talvez” basta. Nada de outrossins e de destartes, que eu descarto. Jorge é quem tem essa mania de corrigir e corrigir, desde quando nos cruzamos no corredor da faculdade, era tão frio, meus All Stars molhados para passar a tarde inteira até a noite. Eu chegaria em casa cedo, era uma sexta, e Jorge reclamando da minha linguagem. Molhei-me, me molhei no corredor antes mesmo de entrar em aula, mas não faz mal, ou faz? E não haverá inconvenientes entre nós dois. Até porque, agora, há greve. Até porque estou aqui dentro, nas suas mãos. E ainda assim, talvez eu me apaixone por você. Você pode até fechar-me agora, mas prometo que a mulher de vermelho não atrapalhará, e Roberto já sabe de tudo e os trilhos estão desativados. Nossa relação será leve, sem ciúmes, nem cobranças. Eu também não gosto que me vigiem e não gosto que me peguem no braço.
     Sim, vestida e desvestida, ponto de ônibus, uma cena precisamente às 5:15 da manhã, adolescentes, tesouras, passeatas, uma noite de sexo, a luz do sol no mar e até vinho, se você gosta de vinho, ou água, e cassetetes, tudo isso eu prevejo ou pressinto mas, por enquanto, ando.
     Sinto o peso da mochila. Toda a minha propriedade cabe aqui. Abri os armários do JK[1], era um sábado de sol, fui encaixotando as coisas com minúcia. Quatro caixas bem fechadas, depositei-as no armário aéreo, lá em cima. As louças, panelas, cobertores, nem encaixotei: serão úteis ao Roberto. Ele vai ficar morando lá.
     Mas isso será no futuro e estou apenas começando a relatar esse fato do meu passado, aquela manhã. Tive que avisar as pessoas, claro. Roberto era o único. Internet é uma coisa muito boa quando você realmente quer acionar o botão “todos os contatos”. Avisei, disso ninguém pode me culpar. Estarão? Eles não sabiam nem da gravidez nem sequer que eu andava com sprays na bolsa. Acho que não vão se importar com a saída, até porque eu não tinha promessas. Logo estarei de volta. Tudo o que ficou daquele apartamento luminoso, arranha-céu, barulho de motores, tudo, tudo, tudo o que possuo ficou dentro da mochila. O resto, doei sem culpa. Uma coisa que sempre esteve certa, pra mim, não sei se já ocorreu a você é até meio chavão, lá vai: tudo o que a gente tem, de alguma maneira, oprime. Porque quando a gente tem um carro tem que achar vaga pra estacionar; se tem um livro, pode até ser um pocket, a gente tem que achar lugar onde guardá-lo. Com um presente, por exemplo, um brinde, que seja, no mínimo há que se tomar uma atitude: tomar para si ou jogar fora. O fastio ou a coragem de fazer um movimento, a decisão, nem que ela seja um rápido largar no primeiro lixo da rua. Sim, é isso o que vou fazer agora com o envelope. Até porque Jorge nunca me fez de trouxa e você, foi você, sim, que me levou a essa ótima ideia. Vejo-o sumir dentro da boca preta e suja, dobrado e pardo, com meu nome escrito a lápis, com o cheiro dele.



[1]     Nota do Editor: nome pelo qual é conhecido um pequeno apartamento sem cômodos nem paredes entre cozinha, sala e quarto, com separação apenas do banheiro.