quarta-feira, 26 de outubro de 2016












Do céu da boca do cantor
ele saiu insuspeito,

o duende.

Ressou desde
o topo da cabeça

escorregou de
dentro do peito
e num

baque

simplesmente saiu.

Foi quando o corpo
de repente se
contorceu

para continuar a cantar
e conquistar as meninas.

Ele saiu
sonso e insatisfeito

esgueirou-se
para além dos cabelos
tão pretos e lisos e lindos

e quase grudou sem querer
no suor desse rosto de índio

do andré que
quase, sim, o matou.


Uma pisada em falso
sem nem sombra de
falsete
facilitou a fuga

com a
pressão de ar comprimido
nos foles de dentro.


O duende
fujão e fajuto

morto de
medo do andré matos
se viu finalmente a salvo

do passo pesado
dos pulos
dos pulsos que vão e que vêm,
vociferados.


A plateia
ignorante do duende
continuou cantando

agarrada num acorde
acima da fumaça dos estrondos.



O duende
finalmente a salvo
não sabia o que fazer
e nada fez.

Pronto para aprontar e
desagradar as meninas

grudou num canto do teto
preto
e ali ficou.





segunda-feira, 24 de outubro de 2016



























Giovanni Batista Bracelli, 1632





sei que Plotino me espera
para um encontro extra-conjugal.
Plotino parado, à mão,
na mesa de cabeceira.

Traição sem ancoradouro
nem hora pra acabar,
à vista do nascedouro.

Plotino é brasa,
buraco à guisa de fundição,
estrondo de gonzos interiores,
belo como a brisa do verão.

Plotino de ferro,
de trilho, de alça e
escada, Plotino de farda
é prata da casa,
confortável, verde,
dedicado a dedicatórias,
furtado na feira,
crime amaro e amuleto.

Plotino é tesão de todos os tesouros.
Plotino Platão,
alívio das mal-casadas,
cassado,
Plotino enfim enamorado,
posto de lado, no lodo,
do alto do trovão,

Plotino trovador de boca e de boteco,
rei do lero-lero,
lilás, feminídeo e feminazi,
femeeiro, tão fodão,

Plotino à porta de todos os precipícios.

Plotino lua de prata,
patrão, fuga e sonata
para minha boceta,
homem casado, safado,
comido a mordidas

no marco das reminiscências,
uno e vazio como todos os cem mil.

Plotino aflito, roubando carros,
coçando o saco,
comendo restos,
Plotino papo reto depois das baforadas,

tomador de porradas,
heroi, bastardo,
chacinado em Xingu,

filho de Xangô, estuprado,
Plotino de pele sem pêlo
ou atropelo, curado

pelos curas mais viados,
martirizado, milico,
cheio de atrito, atordoado,

Plotino palhaço e
puto, porco,
pedaço de nada que não se lê,
namorado.



sábado, 22 de outubro de 2016










Voz havia
atrás da bocca
della verità

uma voz persuasiva
voz governo

desestimada dos deuses

voz estima
da vida pouca dos falsários

voz havia
que mentia
quando mordia o inocente

E a pedra sobrevive
desde tempos tão antigos -

a pedra -
a Fica -
guardada em hall de igreja

em Roma -
a terra salafrária

única paisagem e
cloaca massima

vertigem de passado
e sumo sacerdócio


O sumo do sacerdócio
é querer ser essa voz
que engana o tempo

e revolta
ainda

uma boca passada
de pedra

que pulsa
onde todos põem a mão



segunda-feira, 17 de outubro de 2016




você quer ver de novo 
aquele que é velho 
e aquele que se veste 
em listras brancas e azuis. 

o gênio, o bamba, o Genet, 
o que nunca se sacrifica. 

você quer ver de novo 
o que não pare
e o que não para nem
nasceu para seu pai.
o que abunda em rios 
e em montanhas
o que faz gemer a terra
e te atiça como 
prova e professor -
o ator -
o só cabelos brancos
atalho de antanho
de nuvem, de motivos.

você quer rir de novo do de
raivas
de nenhuns amigos,
o nu no supermercado,

o do abismo, o abismado, 
o mal amado e
o cabeçudo e
o caralhudo e
o otário

o só salário e
o salafrário,
o que te traz de novo a manhã.

você quer ver de novo,
você é o ovo, 
ele o ele e o ela, 
o sigismundo
o Sigmund Freud

o frio o freund o azulejo
o Alentejo e
o cara de pau, a pia bastismal,
de cortiça, o bacanal,
aquele que não cabe nos óculos.

você quer ver de novo 
o carismático e o asmático
o másculo 
o mouro 
o molhado 
o milho e
o amanhã,

o Plínio douto o sábio
o sabão e o mouco, 
o que não destrava so dentes, 
o destroçado, 

o dançado em drama de esquina,
o esgrima,
o xamã

você quer
o que nunca se despe
o incriado e o mal criado
o infiel e o dono do quartel
o mercenário e
o troco não trocado

o nada de nenhum,
o Um e o mais um. 

o úmido, o deslocado
o trovador e o tronco
o monstro da lira sem cor, o intruso,
você quer,
o confuso, o Confúcio, o florido,
o todo amor e o tanto desamor.

você quer ver de novo, sim,
o incômodo, o iniciado
o Confúcio, o amigo e o amado, 
o enfim oferecido, aquele que. 











quarta-feira, 12 de outubro de 2016






de nada adianta fazer coisas úteis, quando você não cumpre o cronograma.
cronos ofusca com o copo na mão, dizendo: aja!
e haja luz para verter em vida as massas gordas da escuridão.
o que é que se faria se não fosse o saborear do dia, sem perdão e sem paralisia,
porém lento, lento, lento?

sei que tudo se resolve em tintas, a matriz é a grande mãe das horas tornadas tornado
de repente desinútil
como a gravidade da gravura preenche horas
em doses de aguarrás

entre buchas e esponjas
(manchas a evitar
com talco e paciências)
jogos inteiros de cadernos, quatro por quatro
secaduras de uma vez.

sim, é aqui, nesse precipício, que se desfazem as potências
e as nuvens que um dia, não neste, ainda mendigarão sentido
sob os olhos aflitos de momentos passageiros.

fazer sentido de passado impróprio, doente, recente -
a lembrança desse rosto que vem em hora
imprópria, sem nem sombra de um beijo que eu quis dar?
nem lugar para intervalos
quando a lembrança é nítida,
e são cílios, brilhos, olhos,
boca molhada de poros e pêlos
para os quais se apela em linhas.

a tela come o cuspe de cronos, e
então não há
língua que haja
e aja nos longes de lua cheia.





terça-feira, 11 de outubro de 2016















vá de retrum, retrocesso. você pensa que tudo pode, mas esqueceu as janelas abertas, qualquer um pula para dentro do seu centro.
e depois, puxe a cortina. veja daqui mesmo onde picharam o seu nome no espelho do olho da rua.

vá de retrum, retrocesso. que eu aqui sei do meu bote.
comprar mais um pouco de paz, seja com gin ou com ginástica, planejar parricídios e prestar-se ao trabalho de parto, isso ninguém quer.
não é apenas porque sou mulher, é porque os muros são falsos e os passados passam mais rápido do que se imagina.

depois voltam com cheiro de estar por cima, mas não. nem acima nem abaixo.
é de retrum, vá de retrum.

não compro amor fabricado na china. nem embarco em barcos furados. também, não importa, esses portos se desfazem com o primeiro vendaval.
e há porcos e vendilhões de templos em todos os espaços parados.

por isso, avante.
e feche a porta, adiante, que ninguém tem mais tempo não.
você chegou atrasado, retrocesso. já até picharam e mijaram em você por todos os lados.
e tá na hora do meu almoço, agora.




domingo, 9 de outubro de 2016










Cronos #1 na Flamboiã ~Feira de Arte Impressa, no Palácio Cruz e Souza/Florianópolis, 08 e 09 de outubro de 2016. Performance orientada para vídeo, 3min, + duas páginas de livro descartado.


segunda-feira, 3 de outubro de 2016





Em meu bolso, um resto de chuva. Guardo-a por bilênios. Como tirar do bolso ─ sem molhar os transeuntes. Devoram a água aos montes. 
Há um cão escondido entre os meus seios. Fica aqui, sossegado, comendo instantes. Alivia-se em estantes, trás de livros, traça e mofo. Às vezes segredo. Às vezes esgoto. 
Tem borboleta também. Voa e volta. Basta o toque  dessa mão na minha mão. E escorro no risco dos rabiscos. Ressuscitando renúncias. 
Por exemplo, Peter Flötner, 1542. É dele a gota que faltava. A do fantasma. Essa mágoa que se põe a nu, de braços dados, inundados. Água que corre há bilênios, cinco séculos, ou quase. É o que a poeira e a culpa não poupou. O temor dos transeuntes. O coaxar do meu cão. O poder de dizer não.