#declaraçõesdesnecessárias

 

Durante o período de isolamento, durante 40 dias seguidos, realizei um exercício de escrita na rede social Facebook. A cada dia, nesse período, postei, no mínimo, 3 declarações desnecessárias. O trabalho foi desenvolvido como uma forma de experimentar a possibilidade de uma escrita site specific, dialogando, também, com o campo das artes midiáticas. O vetor inicial foi o de pensar como criar uma escrita de interface, que questionasse, a seu modo, a própria rede social. Nesse sentido, a ficcionalização da exposição da vida pessoal foi um fator de risco da empreitada, que surgiu também como resposta à situação de isolamento social vivenciada a partir das ações de combate ao novo coronavírus.


Anúncio das #declaraçõesdesnecessárias, postado em 09 de maio de 2020:

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2869330736435414 

*

DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 1, 10 de maio de 2020)

1. Aqui no bairro, há três vozes que relembram constantemente que os seres estão vivos, lá fora: o carro do ovo ("eu disse 30 ovos por apenas 10 reais, aceitamos cartões de débito e crédito"), o carro dos produtos de limpeza da Deusa (com o "fabuloso alvejante para roupas coloridas", "sua casa vai ficar limpinha e perfumada") e o mais recente anúncio que não surpreenderia os Novos Baianos: "vende-se sonhos, temos sonhos de doce de leite, creme e goiabada, três sonhos fresquinhos por apenas cinco reais". Infelizmente, hoje é domingo, e só ouvirei as vozes do vizinho mirim, que grita o tempo todo, de dor e de prazer, e os odiosos arrotos do adulto, que se orgulha de parecer assim, bem escroto, como os seguidores do seu presidente.

2. Uma lagartixa morta ficou grudada na parede, perto da máquina de lavar.

3. Polaco canta "la vida es una herida absurda", enquanto o Piazzola chora bandoneón, que é o melhor jeito de chorar. Isso é mais bonito do que o céu, e o Alberto Caeiro só foi Alberto Caeiro porque não viu aquela entrevista do Polaco em que ele e o entrevistador, falando sobre os velhos anos do tango e todos los pibes daquele tempo, não se continham nas cadeiras e faziam movimentos alternados, erguendo-se um em direção ao outro. A voz canta-resmunga-reclama "vení, volá, vení", mastigando o sofrimento, assim, porque não cabe no corpo, não aguenta cadeira.

4. Aquela senhora que vocês detestam é mesmo muito detestável.


#declaraçõesdesnecessárias (dia 1):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2870985132936641

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 2, 11 de maio de 2020)

1. Há 18 livros sobre a bancada do meu quarto. Muitos são de poesia. O primeiro nome do autor começa com C, em 5 deles; com A, em 2; em outros 2, com F e com J, e há um livro cujo nome do autor começa com P, um com W, um com S, um com D, com P, com R e com G.

2. Meu celular tem 78% de bateria enquanto escrevo essas declarações.

3. Hoje usei uma máscara cujo lado exterior é da cor lilás, que combinaria bem com o dia de ontem, que era domingo, e dia das mães.

4. Tenho um pé de mirra plantado no meu jardim. Ele é mais alto do que eu. Às vezes, eu jogo folhas de mirra na cara das pessoas.

5. A lagartixa morta continua lá.

6. Pecuaristas de hoje, escravagistas do século XIX, nunca falarão por nós.


 #declaraçõesdesnecessárias (dia 2):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2874417389260082

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 3, 12 de maio de 2020)

1. I'm still alive.

2. Eu nunca fiz uma live, / mas é como se as fizesse. / Minha alma é como uma conta do Insta, / Conhece o vento, o sol e os stories / E anda pela mão da internet / A seguir e a olhar. (...) (...) (...) Guardar rebanhos é para quem tem o olhar nítido como girassol; ou, então, uma boa resolução na câmera, meu caro Caeiro. Estamos todos doentes dos olhos; ou, então, o que falta é o samba no pé.

3. No 'De segunda a um ano', o Cage conta uma historieta oriental que afirma algo do tipo: se uma coisa incomoda, é preciso ficar diante dela até que não incomode. É mais ou menos o que tem me acontecido em relação a mim, passando tanto tempo só. Cheguei a me escrever uma carta, mas percebi que não tinha nada a me dizer.

4. Jogo folhas de mirra na cara das pessoas, sim, e também na minha. Carrego-as comigo, sempre que saio. Como tenho saído pouco, jogo essas palavras na rede.

5. Coisas que tive, mas não usava; desfiz-me delas. Quando precisei, já não tinha: um rolo de pão, por exemplo.

6. Há vários objetos sobre a mesa. Nenhum deles me incomoda e, mesmo assim, passo muito tempo diante deles. Poderia escrever uma carta para o molho Shoyu, para a pimenta do reino ou para esta garrafa vermelha, mas seria tão desnecessário quanto estas declarações.


#declaraçõesdesnecessárias (dia 3):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2876334849068336

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 4, 13 de maio de 2020)

1. Falar sobre nada parece ser mais fácil do que não ter nada a dizer.

2. As folhas das plantas estão úmidas; minha garganta, seca.

3. Em Florianópolis, pelos meus cálculos, em 30% dos dias úteis, chove. Essa é uma preocupação constante para quem vai para o trabalho de bicicleta e já engatou a roda em um dos infinitos buracos do asfalto. O tempo é de chuva pouca e nada de rodas. Ir para o trabalho é já estar nele, geralmente, tanto agora quanto no não-quarentena. Eu trabalho até sonhando.

4. É bonito ver o reflexo da luz nas folhas. Dizer algo sobre isso, ou não, é questão mais de garganta do que de pensamento e de olhos.

 

#declaraçõesdesnecessárias (dia 4):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2878351948866626

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 5, 14 de maio de 2020)

1. Um caderno de capa azul, sobre um edredom azul, com linhas azuis, manchado com caneta azul. Quase nunca é lido.

2. Coisas que eu vestia, adorava, caíram de moda, voltaram, e não uso mais: vestidos trapézio, minissaias de cintura alta (eu tinha uma vermelha, de linho), pantalonas estampadas (bem soltas), sapatos pretos de salto quadrado, golas rolê.

3. Florianópolis, 14 de maio de 2020. Querido molho Shoyu: obrigada pela sua presença na minha mesa. Você é um ótimo acompanhante. Sei que não devo abusar da sua companhia, principalmente pelo teor de sódio que vive em você, ainda que não seja sua culpa. Não fique triste, mas aqui em casa você não fará amor com salmão nem peixe branco. Em contrapartida, sei que você aprecia a sua relação com as cenouras e com as saladas. De vez em quando, vejo você pedindo para jorrar sobre uma ricota, indecorosamente. Mas você também aprecia quando eu te misturo com um bom e velho macarrão, contrariando as normas. Um abraço e até agora mesmo, Telma.

4. Blá blá blá blá repique de sinos blá blá blé notícias ruins cré cré cré mas que coisa, hein, zip zip zip hip hip hurra, fica quieto, menino, para quieto, uáaaaaaaaaaaaaaaaaa, brrrrr, zaz, pof.

5. Depois de dez anos sem tocar flauta, não lembro nem como se faz um ré. Mas vamos avante.

 

#declaraçõesdesnecessárias (dia 5):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2881278598573961

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 6, 15 de maio de 2020)

1. Cresci ouvindo meu pai tocar trompete nos fundos da casa. Quando ele era menino, meu avô parece que disse algo assim: numa mão, vai a enxada; na outra, o instrumento. Quando eu era menina, o som do trompete me atormentava. Acabei desenvolvendo uma técnica de múltipla audição: uma orelha no texto, outra na música. Hoje, quando me sinto atormentada, é só ligar um jazz e passa. O som estridente do trompete traz aconchego, proteção. Já o texto entrou pela outra orelha e se escondeu nos recônditos do corpo.

2. Minhas mãos estão sempre ocupadas, talvez para compensar a sobrecarga das orelhas.

3. Uma preciosidade da nossa língua: a palavra "marimbondo". Repito-a mentalmente, "ma-rim-BOOOn-do". Eu poderia escrever sobre a palavra "malemolência", também, mas ela derreteu na minha boca, como se fosse um chocolate.

4. Minha vó quebrava as balas Soft, que não derretiam nunca (as pessoas morriam de engasgo com as balas Soft, naquela época).

5. O poeta é um fazedor: hoje fiz massas de pizza.


#declaraçõesdesnecessárias (dia 6):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2883910094977478

*

 

DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 7, 16 de maio de 2020)

1. Sobre a mesa da cozinha, agora, há 6 objetos de vidro, 2 de cerâmica, 8 de plástico, 2 de metal, 2 de tecido e 1 de madeira.

2. Na última vez que fui à praia, cruzei com um grupo de uns 30 urubus. A cena era tétrica, falávamos sobre assassinatos e os vestígios de um trash metal bem brutal ainda zuniam nos meus ouvidos, vindos de uma noite anterior. As marcas das patas dos urubus, as nuvens que se formavam por detrás dos morros, nada daquilo era literatura.

3. O poeta é um fazedor: eu fiz tortéi, ontem.

4. Ocorre-me, agora, que os urubus sabem dividir a carniça muito bem. Dava-nos um prazer estranho ver a cabeça do urubu afundando na carne mole e molhada do bicho morto, já irreconhecível.


#declaraçõesdesnecessárias (dia 7):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2886186124749875

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 8, 17 de maio de 2020)

1. Declarar o amor continua sendo necessário.

2. Procurei sinônimos de "energúmeno" para ver se encontrava uma maneira de precisar o que eu penso sobre aquele sobre o qual só conseguimos dizer "não". (E "não" não bastaria?) (Parece que não.) (O que falta?) (É uma figura tão absurda que até a palavra "absurdo" quer correr dele.) Trata-se de um estafermo, paspalho, palerma, estorvo, pascácio, cretino, lorpa, pacóvio, papalvo, imbecil, parvo, boçal, bronco, estúpido, beócio, brutamontes, descortês, incivil, obtuso, tosco, inepto, estulto, descontrolado, espeloteado, perturbado, não. Ele não.

3. Declaro não ter nada a declarar na terceira declaração, tão estapafúrdio o tempo fica, quando paro para pensar nele.


#declaraçõesdesnecessárias (dia 8):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2890117491023405

* 


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 9, 18 de maio de 2020)

1. Estou sentada num sofá marrom, com uma calça cinza, uma camiseta azul. A calça está manchada de tinta em alguns pontos.

2. Isto não é literatura. Isto é isto, e mais nada. Se isto fosse mais do que isto, já não seria isto. E a literatura é mais. Ou, às vezes, é mais ou menos, também. Como isto, que pode ser mais ou menos ou só menos, mesmo.

3. Estou ouvindo o vento nas árvores, uma conversa animada em algum jardim, uma máquina de cortar grama, lá longe, alguns carros passando, de novo o vento, um barulho de água corrente, um farfalhar de animais se mexendo nos pátios, passos na casa do vizinho, bateção de coisas contra coisas (fazem faxina, decerto), uma galinha geme, a geladeira range, há uma televisão ligada. Agora começou o aspirador de pó. Tomara que não dure muito.

4. Descobri que xingar, insultar, é algo muito difícil de se fazer com as palavras. No fundo, eu sempre preferi a doçura. Exercitar o escárnio, nesses hojes, um escárnio com elegância alegre, está se tornando uma óbvia necessidade.

5. Eu prefiro a lagartixa viva, prefiro gatos, prefiro grão de bico, prefiro colo, prefiro ficar em casa, prefiro inverno, prefiro vermelho, prefiro música, prefiro beijos bem molhados, prefiro doce de leite, prefiro homens, prefiro mulheres, prefiro lemon pepper, prefiro pizza, prefiro o sofá marrom ao cinza.

 

#declaraçõesdesnecessárias (dia 9):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2892648140770340

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 10, 19 de maio de 2020)

1. Hoje eu comi mingau de aveia, arroz integral, grão de bico, pinhão e macarrão. Entre uma refeição e outra, comi umas sementes esparsas e um doce. E tomei muito café.

2. Sonhei com um cachorro. Seu focinho úmido roçava meu rosto, com ternura.

3. Fiz um concurso entre os eletrodomésticos da casa, a fim de definir quais são os mais úteis e importantes. Eis o pódio: 1) geladeira, 2) chaleira elétrica, 3) ventilador, 4) microondas, 5) airfryer. Não possuo televisão nem freezer, e o aspirador de pó quebrou.

4. Usei a máscara com parte interior rosa para ir buscar comida.

5. Durante o dia todo, pairou uma sensação de alívio, como se o cachorro ainda estivesse perto.

 

#declaraçõesdesnecessárias (dia 10):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2895979917103829

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 11, 20 de maio de 2020)

1. O vento faz música mexendo nas folhas.

2. Não gosto que mexam mas minhas coisas.

3. Mudei os móveis de lugar e o tempo começou a correr anti-Cronos, como se eu estivesse fazendo uma pintura.

4. Posso me des-declarar, se for preciso; me antiplurimultipré-declaro sempre que necessário, ou não.

5. Ele não, e não queremos pecuarista nenhuma na cinemateca, a não ser que seja pra ver um Glauber.

6. Hoje é ontem e através das manhãs também se vai longe, quando se pode ver o estar sem pressa. E estar inteiro na canção, "Como um picolé no sol".

 

#declaraçõesdesnecessárias (dia 11):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2898965446805276

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 12, 21 de maio de 2020)

1. Em cima da mesa, há sete livros. Um foi publicado em 2012, um em 2013, um em 2005, um em 2006, um em 2010, um em 2003, e um não tem data de edição (suas páginas estão amareladas). Na cabeceira da cama, entretanto, há um livro publicado em 2019.

2. Eu gosto de bergamota, banana, laranja e pera. De abacate, nunca gostei.

3. Hoje passou por aqui um carro do sonho diferente. Oferecia deliciosos sonhos com recheio de chocolate, doce de leite, creme e goiabada. Também coxinhas e salgados. Além da heresia de oferecerem coxinhas, das/dos quais há que se manter a máxima distância (os últimos acontecimentos o comprovam), tinham um locutor profissional empolgado, alô dona de casa, cliente amigo, alô criançada. O que me agrada, no carro do sonho original, legítimo, é a gravação caseira e o sotaque do interior, bem marcado. É assim que se deve falar de boa comida, de amizade e de sonhos.

 

#declaraçõesdesnecessárias (dia 12):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2900923749942779 

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 13, 22 de maio de 2020)

1. Está tocando a canção Estrela, Estrela, de Vitor Ramil, enquanto escrevo estas declarações.

2. Não sei se escrevo sobre a jibóia, cujos galhos já pendem, vistosos, por um metro; sobre a Nossa Senhora que a minha tia, irmã Querubina, me deu, e está disposta ao lado da jibóia; sobre o círculo cromático que insisto em manter pendurado por um prego meio solto; sobre os números de Grabovoi espalhados pela casa; sobre a forma de falência que é não ter alguém para amar, em plena sexta-feira; sobre a canção Ouro de Tolo; sobre a térmica verde parada ao lado dos galhos de mirra, também verdes, exuberantes; sobre os talheres que já estão secos e ainda não guardei no armário.

3. Ao menos o número do dia é bom - ou, no mínimo, menos pior.

 

#declaraçõesdesnecessárias (dia 13):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2903020543066433

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 14, 23 de maio de 2020)

1. Luzinhas azuis, verdes, vermelhas e amarelas. Amarradas numa tripa de fios. Ligadas à tomada.

2. "O sol consola os doentes e não os renova." Nem sempre. Há momentos em que o consolo vem da chuva. Das sombras. Ou não vem.

3. Um gato de perfil, recortado em mdf, pintado, envernizado, na beirada da porta. Ainda não aprendeu a dizer o seu nome.

4. Piscam.


#declaraçõesdesnecessárias (dia 14):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2906215336080287

*

 

DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 15, 24 de maio de 2020)

1. Sonhei de novo com o cachorro. Eu colocava comidas muito grandes na boca dele, depois precisava tirar uma parte, para que ele conseguisse comer.

2. Nunca escrevo estas declarações de pé. Agora, estou sentada no sofá cinza, ou deitada na cama.

3. Tenho alguns objetos aparentemente inúteis, que prezo muito. O pódio: 1) caleidoscópio, 2) medidor de proporção áurea, 3) caixinha de música, 4) jatobá (faz som de água), 5) borracha de Itu, onde está escrito: "Para grandes erros". As flores de crochê quase entraram na lista, mas o pódio é de 5.

4. O poeta é um fazedor: ontem fiz xixi e cocô.

5. O ventilador fica ligado inutilmente durante várias horas. Já tentei substitui-lo por ruído branco do YouTube, mas não deu certo.

6. A receita de macarrão com farinha de linhaça dourada funciona (fiz talharim), mas não fica tão boa quanto a outra.

 

#declaraçõesdesnecessárias (dia 15):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2907485582619929

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 16, 25 de maio de 2020)

1. Instalaram um pula-pula no pátio do vizinho. Há sempre uma criança suspensa no ar. Voem, crianças.

2. Apenas uma vez na vida eu recebi, de presente de aniversário, um poema chamado Aniversário - aquele mesmo, do Álvaro de Campos, que começa assim: "No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, / Eu era feliz e ninguém estava morto". Hoje, senti que habito, quando não quero, uns ecos contíguos a esse poema, ainda: "Comer o passado como pão de fome" é coisa que me deixo fazer, de vez em quando, vasculhando diários antigos.

3. Instalei a imagem de um Cézanne à minha frente, para ver se consigo parar a mente um pouquinho, nem que seja para estacionar os olhos junto a umas belas banhistas. Coincidência, elas são 16, mesmo número do dia destas declarações.

4. Minha fiel escudeira e amiga, no entanto, é a tartaruga que eu comprei de um aluno indígena da UFSC. Ela dorme todos os dias ao meu lado. Ensinou-me muitas coisas sobre o permanecer e sobre o não saber.

5. Esta é a primeira vez em que escrevo e posto as declarações com o computador. Geralmente, eu uso o celular.

6. "Deixa o pensar na cabeça" é um bom conselho que encontrei revisitando o tal poema, agora mesmo. Voem, pensamentos, anos, lembranças, crianças, aniversários, declarações.

 

#declaraçõesdesnecessárias (dia 16):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2910789872289500

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (Dia 17, 26 de maio de 2020)

1. Higienizei 15 bananas, 8 bergamotas e um pedaço de moranga capotiã. Estão secando. Compõem um belíssimo conjunto de amarelos.

2. Recebi pelo correio o livro de partituras do José Miguel Wisnik e, ao invés de devassar as pautas (nem lembro mais como se faz), deixei o volume ao lado do lugar onde faço as refeições. Há um retrato imenso na capa e essa presença me agrada tanto que almoço e janto dando umas olhadelas de revesgueio e quase faço perguntas e observações, como se estivéssemos em uma aula online, porém, ao vivo.

3. Leonardo escreveu no Tratado da Pintura que ele conseguia perceber as sutilezas da personalidade de uma pessoa pelas linhas da face. Ele lia rostos como as mulheres ciganas leem as mãos. A diferença é que elas preveem o futuro, enquanto ele decodificava o passado dos retratados. Ultimamente, na falta de futuro, tou fechando com o Leonardo.

4. Eu bebo Keep Cooler de pêssego de vez em quando e não tenho nenhum problema em assumir isso. Faz-me lembrar das primeiras noites de festa, da excitação das descobertas dos prazeres adultos. Os sabores também dizem do passado.

5. Pelo menos eu já sei onde é o ré. Mas o que eu queria mesmo era avançar rumo ao que não tem nome.


#declaraçõesdesnecessárias (dia 17):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2913314608703693

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 18, 27 de maio de 2020)

1. Enquanto escrevo, a eletricidade oscila, criando na vizinhança um clima meio tétrico, meio rock'n'roll. Lâmpadas piscam a intervalos irregulares.

2. Sonhei que estava passeando de ônibus por uma cidade italiana. Eu e minhas companheiras de viagem procurávamos um lugar para almoçar e descemos abruptamente quando avistamos um aglomerado de restaurantes. Entramos em uma galeria, ao invés de ir direto para um deles, e topamos com uma loja de instrumentos musicais. Eu gostei de uns sinos dourados que estavam pendurados na entrada. Tinha com eles algum tipo de familiaridade.

3. O pula-pula do vizinho ficou vazio o dia inteiro. As crianças voaram.

4. A quarta declaração também não é necessária, mas pisca a intervalos, também.

5. Soam sinos esquisitos.

 

#declaraçõesdesnecessárias (dia 18):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2915785218456632

*


Estou escrevendo essa postagem, apenas. Escrevo para nada e declaro que, assim sendo, assim é. Por outro lado, o que é e se justifica por si, frente ao que deveria ser, faz parte de um conjunto de contingências que a rede social não auxilia em nada a circunscrever. Escrever e desescrever são gestos tão necessários quanto respirar e beijar na boca. Ontem, meu amigo

Jorge Bucksdricker

, que desistiu de desistir de publicar um poema por dia nesta mesma rede, durante 30 dias, sem qualquer motivo aparente, pôs para a gente ouvir aquela fala célebre do Leminski em que ele afirma que o poeta "não é uma excrescência ornamental da sociedade", mas, antes, "uma necessidade orgânica". Convinhamos (com vinho tinto) que as necessidades de sobreviver e de beijar na boca, ultimamente, têm parecido mais urgentes do que as nossas divagações formais e pseudamente filosóficas. Porém, sempre se pode somar o nulo ao nulo e obter algum resultado, nem que seja um respiro. Declaro que continuo respirando, nem sempre tão bem quanto gostaria. Sobre a parte de beijar na boca, tenho nada a declarar. Declaro que estas são as #declaraçõesdesnecessárias do dia 19, dispostas assim, sem título e sem números, sem motivo especial.


 #declaraçõesdesnecessárias (dia 19):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2918381274863693

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 20, 29 de maio de 2020)

1. "Se você ficar o dia todo dentro de uma garagem, nem por isso se transformará em um carro." Li essa frase há muitos anos, em uma mensagem aleatória, cujo conteúdo não me interessava. Guardei-a na garagem da memória e não me transformei em nada.

2. Das 7 bananas da penca, já comi 6.

3. A jibóia continua estendendo seus galhoraízes, serena sobre a escada. Para ela, quarentenar é ser lembrada.

4. Dois livros que estão sobre a mesa começam com a palavra "teoria". Um é Teoria da literatura, outro Teoria da música. Nenhum deles muda a vida da jibóia.

5. Tenho um desejo ardente de ver museus.

6. Não lembrei de nenhum sonho da noite passada.

7. O poeta é um fazedor: vive se fazendo.


#declaraçõesdesnecessárias (dia 20):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2921002414601579

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 21, 30 de maio de 2020)

1. Ler cansa, escrever cansa, estudar alemão cansa, procurar citação cansa, gravar cansa, pensar cansa, revisar artigo cansa, tocar flauta cansa, ler tese cansa, procurar livro cansa (principalmente quando o livro está na UFSC e a gente não pode ir lá buscar), amar cansa, desamar cansa ainda mais, limpar a casa cansa, pintar cansa, desenhar também, resenhar livro cansa, planejar livro também, procurar nas pilhas cansa, encontrar também (sempre se encontra o que não se procurava), pedir cansa, recusar também, verificar cansa, procurar a portaria, qualificar o trabalho cansa, marcar data cansa, não encontrar o e-mail cansa (ô se cansa!), organizar a agenda também, pedir desculpas o tempo todo cansa, fazer ficha de leitura, editar áudio, comparar preço, buscar tutorial, fazer upload, encomendar floral, analisar as linhas, fixar conceito, manejar cabo, retirar o pó, acender a luz, fechar a porta, andar de bicicleta, reformular, adequar-se, encantar-se, tudo cansa, a única coisa que descansa é dançar.

2. Uma das melhores coisas que eu fiz na quarentena foi comprar um fone com blutuf.

3. Um dos compartimentos do roupeiro está cheio de peças de cerâmica que eu fiz na faculdade. A sensação do barro na mão, e o modo como as figuras iam surgindo de dentro das minhas palmas é um dos maiores prazeres que já experimentei.

4. Ouvir berros dos vizinhos cansa tanto que não consigo nem inserir na lista. E querem que a gente se concentre, assim.

5. Tem três livros em cima da minha cama. Os três foram publicados em 2019. Um começa com a palavra "Você", o outro com "Hey", e o outro com "Construir". Eu poderia ir mesclando os livros e formar um quarto, que começasse com "Hey, quero construir você (...)". (Quem quiser, que complete e entre no jogo).

 

#declaraçõesdesnecessárias (dia 21):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2923322237702930

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 22, 31 de maio de 2020)

1. Um urso. Como Maiakóvski, em "Sobre isto". Um livro insuportável. Um cachorro é um cachorro é um cachorro. E jamais será um urso. Um urso é perigoso, autoritário. Raro.

2. A rose is a rose is a rose, e nunca será um cachorro. Hoje ouvi um latido estranho, como se fosse de um cão velho, mas parecia humano.

3. Eu adoraria falar sobre assuntos políticos, mas seriam declarações necessárias.

4. O vento, os miados longínquos, as flores que nunca vi, os cheiros do corpo, a água corrente, o orgasmo, os mapas, o macarrão, a lua cheia, a brincadeira, os sinos, a linha férrea, tudo isso pode ser lembrado a qualquer momento. E, quando é lembrado, é como se estivesse lá.

5. Um São Bernardo. Um urso que está sempre sorrindo. E não é Maiakóvski. E não é sobre isto. Isto é um cronograma. Um exercício. Um compartilhamento. Um isso.


 #declaraçõesdesnecessárias (dia 22):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2926269717408182

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 23, 1 de junho de 2020)

1. Minha Nossa Senhora do mundo, minha Nossa Senhora do caos, minha Nossa Senhora do malbec argentino, minha Nossa Senhora dos cavalos, dos vômitos, dos quadros empilhados, minha Nossa Senhora das coisas sem defeito, minha Nossa Senhora do frio, minha Nossa Senhora do corpo, minha Nossa Senhora do cabo carregador de celular, minha Nossa Senhora da lista de compras, minha Nossa Senhora dos cabelos compridos, minha Nossa Senhora da roupa por lavar, dos adeuses, das minas, das barbas, minha Nossa Senhora das latas, dos refugos, das pedras, das precisões, da buceta, das notícias, dos alívios, dos sacrifícios, das mortes por tiro, por queda e por vírus, minha Nossa Senhora das curas, da caretice, das agruras, do pensamento, todas as Nossas Senhoras desse momento: mandem embora tudo que não nos serve, como o fascismo e a desfaçatez. Perdoem-me pela reza necessária em meio a declarações desnecessárias, perdoem-me pelas blasfêmias, pelas heresias, mas eu rezo a cada milímetro de palavra que sussurro entre as mãos para dizer a todas as senhoras e aos senhores que somos nossas e nossos, se quisermos, e operamos milagres, quando queremos.

2. Ontem um amigo me disse que tem covid 20, 21, 30, e o caralho-a-quatro, todos por vir, já engavetados. Eu me agarrei na minha mirra e fiquei pensando nos caralhos. Que é melhor se agarrar com o agora a passar Reiki nas gavetas. É por isso que rezo, medito, meço que a vida é agora, como diria Drummond. MAS VIVEREMOS (1945): "Já não há mãos dadas no mundo. / Elas agora viajarão sozinhas. / Sem o fogo dos velhos contatos, / que ardia por dentro e dava coragem. // Desfeito o abraço que me permitia, / homem da roça, percorrer a estepe, (...)". Eu percorro os silêncios do corpo num futuro engavetado, faço dos meus desertos alguma palavra, pedindo que as mãos sejam dadas e que nos demos ao que há, que é só o que há.

3. Erguer-se em voz, em vós, em vez, em talvez, em haja, em aja, em ajo, em algo, maio, ainda em maio e já junho pede a vez, perde a voz; mas, mesmo roucos, nos erguemos. E somos o que seremos ou, ao menos, eu acredito.


#declaraçõesdesnecessárias (dia 23):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2928521017183052

*

 

DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 24, 2 de junho de 2020)

1. Separei seis narrativas que comprei há pouco tempo, deixei-as sobre o sofá marrom durante todo o final de semana e não consegui escolher qual será a primeira a ser aberta depois que finalmente acabar o Saramago (atualmente em 47%, no Kindle). (53% são um mundo, em se tratando de Saramago. Mas nós somos 70% ou mais, e muito mais.)

2. Às vezes, abro os livros como se fossem oráculos. Acabei de abrir "La vuelta al dia en ochenta mundos", do Cortázar, e caiu no texto Relaciones Sospechosas, que começa assim: "Encuentro con el mal - El tiempo es molesto. Un escritor debería tener el privilegio de REIFICAR su imaginación en las encrucijadas más lunares de la vida (...)" 😳. Deveria.

3. Um afeto veio aqui e disse que eu preciso urgente de um animal de estimação, de uma SmartTVzona monstruosa na sala e de uma internet mais rápida. Resolveria todos os meus problemas, segundo ele. Mas eu preciso apenas de silêncio.

4. Nas esquinas da lua, não deveria haver espaço para os latidos, principalmente quando são dos animais de estimação dos outros. Uma conversa preocupada e constante em voz possante irrita muito mais do que os ruídos da invasão selenita. Se eu tivesse a tal tevezona, agora, assistiria de novo o filme dos Méliès sobre a viagem à lua, em que aparecem uns seres muito interessantes. Eu me considero 100% habitante do meu mundo, que é sempre mais pra lá.

5. Silêncio, sol, frio, bergamota e beijo na boca são suficientes para tornar a volta ao dia mais do que perfeita. No momento, temos apenas o frio e a bergamota. Mas funcionam bem, diferente da internet.

 

#declaraçõesdesnecessárias (dia 24):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2931212893580531

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 25, 3 de junho de 2020)

1. A tristeza de taurina eu meço assim: "Nada que um arroz cateto com feijão fradinho não resolvam." Ou: "Hoje tou no nível chocolate." (Mas prefiro doce de leite.) "Teve pizza e essa tristeza ainda não passou." Grave, grave mesmo, seria chorar com um cálice de Porto na mão. Diagnóstico: terapia urgente. Mas, hoje, foi dia de arroz cateto, acrescido de aipim chips, e não tenho mais nenhum vinho bom na adega, reduzida a um único branco meia-boca.

2. Um efeito da pandemia tem sido receber relatos de sonhos aos quais compareci: num, eu desmarcava um almoço em cima da hora. No outro, alguém aparecia dizendo: "Olha, a Telma tá mal". No outro, eu cozinhava em uma festa com adolescentes. Este último é o único em que pretendo ter estado, de fato, em espírito, apesar de não gostar tanto assim de cozinhar. (Na pandemia, aprendi a fazer várias coisas boas das quais jamais me sentiria capaz. Volta, mundo.)

3. Dormindo, às vezes, eu falo umas coisas. Passei uma madrugada falando sobre um livro de artista e o meu companheiro, na época, disse que eu repetia, encantada: "É 21 por 27". Quase um A4, mas parece que não era de papel, mas pergaminho. Uma pena não lembrar dessa obra. Outro foi minha irmã que relatou, isso aos 15 anos. Eu tava indo com muita pressa até a Gastão Discos, em Lajeado, para comprar uma camiseta do Led Zeppelin. Até hoje é minha banda favorita. E não possuo a bendita camiseta. Mas tenho uma da Marielle, que eu comprei em Curitiba, na época do acampamento. Eu sonho; ou, no mínimo, realizo, quando sonhamos juntos. Sou muito hippie, apesar do rock'n'roll, pra deixar de acreditar em sonhos - ou, então, foram os anos ouvindo o Clube da Esquina que me deixaram assim.


#declaraçõesdesnecessárias (dia 25):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2933817316653422

*

 

DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 26, 4 de junho de 2020)

1. O tempo restante no livro que estou lendo é de 3h1min, no momento.

2. Ainda bem que eu fiquei com esse edredom plush, de casal, quente e azul, depois que o meu amigo foi morar em outra casa (alguns dizem: 'separação'; eu prefiro: 'desamanho' ou 'rearranjo'). O edredom é bem fornido, macio e confortável, foi fabricado na China, 100% em poliéster, é vendido por uma marca chamada Dui, cujo slogan é "casa com tudo". Eu prefiro: "amealha-se/arranja-se em mim quando estou afim" (de dormir debaixo de um bom edredom, não maliciem, pfvr). A marca poderia ser Uno, também, seria mais filosófico; mas, nem por isso, o edredon me esquentaria mais, eu passaria uma noite melhor.

3. A Página e a Entelequia, duas bonecas que eu fiz durante a faculdade, estão abraçadas e ensacadas e bem guardadas em cima do guarda-roupa. Pelo menos não passam frio. Uma foi talhada na espuma de um colchão e tem a minha altura, a outra foi construída com panos e meias-calças e seus pés são cadernos de anotações. As cabeças de ambas foram retiradas: elas têm de dormir sem cérebro. A cabeça da Entelequia era feita de uns livros que eu gosto, de Pessoa, Baudelaire e Diógenes Laércio; a cabeça da Página era um manual da mulher moderna, dos anos 50, que eu detesto.

4. Levei mais de 20 minutos pensando e escrevendo estas declarações. (O tempo, não sei o que é.) ("Se não me perguntam, eu sei; se me perguntam, já não sei", etc, etc, etc.)


#declaraçõesdesnecessárias (dia 26):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2936622296372924

*

 

DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 27, 5 de junho de 2020)

1. Que hoje é dia de eclipse, bom para sonhar viagens, fazer as pazes, jogar no bicho, se divertir, tudo isso vi e ouvi dizer de bocas-telas, desde ontem. Não sei se acredito. É dia bom, de certeza, pra terminar livro e editar áudio.

2. Na tela-bocarra do meu face, agora há pouco, vi e ouvi: 77% de indignação, 11% de memes aleatórios, 9% de meu-gato-é-o-rei, 3% do combo: panda brincalhão dá trabalho ao funcionário + criança mimosa de touca + um lindo gambazinho dorme agarrado a um galho.

3. Se, ontem, alguém dissesse: "amanhã vai chover o dia todo", eu não acreditaria. A chuva é uma forma de silêncio. E ajuda a esquecer que estamos há tanto tempo em casa. Queria estar em paz, com isso, mas penso em corpos frios sob marquises. Nas histórias que já ouvi das bocas de quem viveu. Traio a desnecessidade na mesma medida em que há motivo para os 77% de indignação.

4. A morte ronda, entra no ar, em forma de vírus, e na chuva, em forma de descaso, e nas casas, em forma de preconceito enraizado nas fímbrias do passado e passado de geração em geração, com a pressa de um homem de negócios.

 

#declaraçõesdesnecessárias (dia 27):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2939085349459952

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 28, 6 de junho de 2020)

1. Não estou com vontade de escrever nada, então vou roubar umas palavras aleatórias de alguns livros que estão à mão.

2. De 'Silêncio', do John Cage, roubei a palavra "(ronco)", assim mesmo, entre parênteses, comi está grafada.

3. De 'A coleção particular', de Georges Pérec, roubei "exposição", e não surpreende.

4. De 'Amor Eterno 2', de  Jeanne Callegari, roubei "interminável", e me faz tanto sentido!

5. De 'Fundamentos de ventilação e apneia', de Alberto Bresciani, roubei "chicote", e espero que nada tenha a ver com a anterior.

6. De 'Risonha', de Reuben da Cunha Rocha, roubei "dedinhos". Amo muito.

7. De 'A idade da escrita e outros poemas, de Ana Hatherly, roubei "teológicas", e de repente me pus mais séria e grave.

8. De 'Diárias', de Jonas Mekas, roubei "saudade", e que sorte eu tive de abrir nessa página.

9. A brincadeira poderia continuar a noite inteira, ou até esgotar o número de livros da casa, mas eu os pouparei das minhas revelações, pelo menos por enquanto.

 

#declaraçõesdesnecessárias (dia 28):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2941540815881072

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 29, 7 de junho de 2020)

1. Acabou o molho Shoyu.

2. Acabou o livro. As lágrimas se dispersaram durante a noite.

3. Acabou, acabou mesmo, qualquer embuste. As evidências não são aquelas da canção. Estão nas ruas, nos bairros, nas notícias.

4. A pimenta do reino se prepara para algo que ainda não sei dizer. Ela cicia ao lado do mel silvestre e, mesmo com a delicadeza do meu zoom, na madrugada, não consigo captar sua mensagem. Vou inquirir a páprica picante, o orégano e o cominho, depois de tomar um bom banho. De manjericão.

5. Minha bicicleta chora. Quase ninguém ouve.

6. Uma lâmpada tremeluzente está coberta de pó, na sala. Agoniza. Mas, da faísca dos seus lampejos, eu prevejo a possibilidade de uma fogueira no pátio, algum dia. Ou da necessária faxina nesse teto alto, em cima das vidraças, que não filtram claridades de Vermeer.

7. Há três laranjas do céu e duas laranjas de umbigo sobre a mesa. O bem há de prevalecer sobre o ego. Prova disso é a finalização da grande tela amarela e, até mesmo, tudo o que vejo aqui na timeline.

 

#declaraçõesdesnecessárias (dia 29):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2944320418936445

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 30, 8 de junho de 2020)

1. Meu vizinho mirim está jogando estralinhos no pátio, à esquerda, e dando gritinhos de satisfação, acompanhados dos aplausos da mãe. À direita, dois trabalhadores da obra discutem questões relativas ao andamento dos trabalhos, removem areia e terra com pás, posicionam canos, usam outros instrumentos que eu não saberia manejar, conheço apenas os ruídos. Acho que cortam coisas. Galos e galinhas da angola se manifestam, ao longe (acho que estão em alguma assembleia, argumentando uns com os outros, ou então numa festa de família, bem animada, naquela hora em que alguém faz uma revelação inesperada sobre a moral do avô).

2. Esta é a primeira vez que faço essas declarações pela manhã. (Vencemos três quartos deste exercício de escrita diário, nesta manhã.)

3. Ouço os trabalhadores perguntarem um ao outro: "De lá para cá?" "Isso, de lá para cá." Ouço as crianças do vizinho repreenderem o menino mais novo (o dos estralinhos): "Ah! Ela vai te pegaaaar!" (Uma cachorra bem grande, no caso). Toda essa frescura e alegria da língua me enche de esperança, quem sabe se porque as rimas são em "a".

4. A luz da manhã ajuda a "abrir os ouvidos", como diria Cage. À noite, inseri uns protetores que, quando bem colocados, bloqueiam até 24 decibéis. Seria por isso que dormi tão bem, mas, mesmo assim, não lembro de qualquer sonho? (O último, da semana passada, incluía uma visita a uma loja de materiais de construção. Eu comprava uma enxada, uma foice e algo que eu não pronunciava, mas o atendente compreendia e separava para mim).


#declaraçõesdesnecessárias (dia 30):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2945674432134377

*


 

DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 31, 9 de junho de 2020)

1. Sei quem é, mas não vou dizer.

2. O/a (xxxxxx) não tem fim. ( x = um substantivo abstrato. Exemplos: boçalidade, sem-vergonhice, desumanidade, etc.)

3. Pra descontrair. Me rachei de rir. Morri. Tô rindo até agora. Não aguentei. Sei que aqui não é lugar para isso, mas (...).

4. Este perfil nunca. Quem me conhece sabe. Lembram que eu postei (...). Venho avisando há tempos. Conforme (...). Não admito que digam.

5. Ódio, raiva, indignação, repugnância, extrema tristeza, desolação.

6. Fui convidado/a por (...). O desafio do (...). O/a (xxxxx) de hoje é um/uma (xxxxx) muito especial. Nos anos (xxxxx), quando eu (...), e até hoje (...).


#declaraçõesdesnecessárias (dia 31):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2948021231899697

*

 

DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 32, 10 de junho de 2020)

1. Se houvesse um concurso de beleza para as couves-flores do mundo, aquela que veio na

cesta dessa semana seria a Miss Universo. Foi plantada em Águas Mornas no assentamento da Comuna Amarildo de Souza - o que significa que, além de bela, ela tem muita saúde e consciência política.

2. Há quatro livros sobre a cama, e cada um foi publicado em uma cidade: Porto Alegre, Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro. Montei uma frase com uma palavra (ou aglomerado, está assim no original) tirada ao acaso de cada livro: "Quase caminho do-que-a-sombra nossa".

3. Uma toalha de rosto rosa, uma toalha de banho azul, um roupão vermelho, uma escova de dentes com cabo de bambu. Um perfume unissex e uma lâmpada de luz fria. Um aperto no coração.

4. Nenhuma couve-flor, por mais maravilhosa que seja, poderá ser comparada à beleza da versão de Mário Adnet, com Milton Nascimento, para a música Navegação, de Moacir Santos.

5. Uma voz antiga, uma voz amiga, um ruído de ondas, um barulho de criança brincando. Tudo isso consola, mas não apaga a morte, o luto, as lágrimas.

6. Entre as publicações, há anúncios. A gente os ignora.

7. Certas certezas às quais nos habituamos e quase as esquecemos: a de que amigos, amigos mesmo, são bem poucos os que temos numa vida; a de que as pessoas que amamos um dia se vão, e nunca as abraçamos suficientemente.

8. Uma forma de cura é o canto, outra é o exercício físico, outra a agroecologia, outra a escuta, e ainda outra forma de cura é o bom e velho "foda-se" com o qual mandar pastar os fascistinhas, os patrulheiros, os brutos e os que se perturbam com a paz alheia.

9. A voz de Gilberto Gil, quando ouvida como uma oração, também opera milagres.


#declaraçõesdesnecessárias (dia 32):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2952082921493528

*

 

DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 33, 11 de junho de 2020)

1. Declaro que declaro.

(a=a)

2. Não faço a mínima ideia do que declarar na segunda declaração.

(a=0) (ou: existe um a, a está vazio) (ou: a=não existe um a) (ou: ah!)

3. Vou declarar Santa Clara, claro. Padroeira da televisão, porque viu uma missa só em imagem, numa tela que apareceu na sua cela como milagre. Amiga de São Francisco. Tem uma congregação, a das clarissas.

Clarissa Harlowe, do romance de Richardson; Clarissa Dalloway, do de Virginia Woolf; Clarissa Albuquerque, do do Erico Verissimo, Clarissa sem sobrenome, do meu (aquele romanção que levei dez anos pra terminar e talvez saia em breve, se a vida clarear). Santa Clara clareou.

4. Clara Nunes, também, a diva.

5. Claras em neve. Nunca fiz, nunca tive batedeira. (Eu já declarei que não sou grande cozinheira.)

6. Poetisa não existe, poetisa já morreu.

7. Nada mais a declarar, já declarei o meu amor.

(Ta)

(Ta=Telma ama)

(Ta>0)

(Ta>0=existe ao menos um x, tal que: x é amado por Telma)

(O amor não tem lógica, nem função.)

(E eu não lembro mais nada de lógica, misturo tudo com tudo.) (Por exemplo: amor com tesão, Telma com santa, cela com televisão, claridade com saudade, sexo com comichão.)

(Mas já sei onde é o sol, o mi, e o lá, que é onde eu quero estar.)

(Eu quero é botar meu bloco na rua, brincar, botar pra gemer, etc.)


#declaraçõesdesnecessárias (dia 33):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2954644374570716

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 34, 12 de junho de 2020)

1. Já vou postando cedo minhas declarações de hoje, que é pra não voltar a esta rede mais tarde e sentir minha torpe alminha tornar-se infeliz e lacrimosa perante as miríades de fotas de lindos casais exuberantemente felizes nas poses da mais elevada harmonia conjugal, que me transportam irremediavelmente para um filme de Lars von Trier, não sei bem se 'Os idiotas' ou 'Festa de família'.

2. A declaração acima contém amargura, ironia e algumas doses de melindrosa verdade.

3. A ficção não nos salvará.

4. No entanto, temos vinho e temos lives. I'm still a life.

5. A primeira coisa que vi esta manhã foi um passarinho de barriga amarela, do tamanho do meu dedo mindinho, que pulava entre os galhos do pé de mirra, divertidamente.

6. A declaração acima é verdadeira e dou fé. Não sei se nos salvará. Mas o vinho alivia provisoriamente a amargura (eu gosto de vinho doce, que declaração!) e sua lembrança me transporta para um mundo mais puro, um espaço ritual, como a cena da transformação do mesmo em sangue de Cristo, à qual assisti tantas vezes. E me vêm outras doçuras possíveis, como a de um órgão barroco que era tocado todos os dias, dentro de uma igreja muito antiga, às 12:30, e furava o dia, fazendo sol. Ou a da cor dourada da água da Lagoa do Peri, na mesma hora, plena de peixinhos que mordiscam e fazem cócegas, se a gente ficar muito parado; ou ainda a do laguinho do Vale da Utopia, onde a água canta baixinho entre duas rochas.

7. É possível concluir que a torpeza e a beleza podem ser declaradas, lado a lado, mão com mão, sem prejuízo para o dia. Mas isto não é um artigo, não precisamos de conclusões, aqui; e, sobre a lógica, já declarei ontem tudo o que me foi possível.


#declaraçõesdesnecessárias (dia 34):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2956366661065154

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 35, 13 de junho de 2020)

1. Formas alternativas de rezar: abrir gavetas, folhear os livros, encontrar amigos em lives, repetir os números, ouvir e falar aquilo tudo que não cabe nas telas.

2. Riscar com carvão uma superfície de dois metros cúbicos. Uma forma de pensar, ao vivo.

3. O boi, o trem e o rio. Vê-los vivos em tudo aquilo que se ouve. "Aquilo tudo" é poesia, tendo ritmos e imagens ou apenas uma breve suspensão no final do sábado.

4. A cabeça não cabe na lua, nem na rua, nem no quarto. Mal cabe em cima da coluna. Dói, sempre que se chora muito. Pintar é chorar na superfície.

5. Sonhar acordado é ver o boi morto, o rio sem plumas, o dinossauro e a dívida externa se misturando, de repente, entre linhas. Dormindo a gente está acordada e, acordada, dorme no ponto, sempre que não sonha.



#declaraçõesdesnecessárias (dia 35):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2960080380693782

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 36, 14 de junho de 2020)

1. Organizar os recuerdos da casa libera a fumaça dos incensos, libera também as lágrimas e o espaço nos armários.

2. Antes de jogar os papéis no saco de lixo, é necessário averiguar se não há algum rascunho de poema nos versos das páginas. Geralmente são fraquíssimos, mas eu os guardo e acaricio como a niños frágiles.

3. Houve um tempo em que não conseguia escrever nada de literatura, entre 2010/2011 e 2013. Os cadernos desses anos contêm anotações de aula, nomes de filmes, desenhinhos e um ou outro recadinho carinhoso --- era o máximo de poesia que eu me permitia naqueles anos, que se seguiram a um episódio policial que vivi em decorrência de uma performance chamada "Não alimente o escritor". Curiosamente, foi depois de ver todos aqueles vídeos de gente apanhando em manifestações que consegui voltar a escrever.

4. Miren todos / ellos solos / pueden más que el amor / y son más fuertes que el Olimpo. Mas que os deuses ajudam, ajudam. E prefiro não tão solos.

5. Até agora, foram preenchidos quatro sacos de lixo seco durante a limpeza. E faltam apenas quatro dias para acabar este exercício de escrita. 4x4 significa "tração nas quatro rodas". Mas essa expressão já me traz outros recuerdos, e as lágrimas também enchem os sacos, por isso vos privo da atração dessa historinha que, quem sabe, ainda posso contar nos próximos dias, desnecessariamente.



Já fiz minhas #declaraçõesdesnecessárias de hoje (dia 36), mas terei que adicionar:

6. 7. e 8. Uma foto do Che, sorrindo, tem poder curativo instantâneo, comparável ao da voz do Gilberto Gil, dos incensos acesos e da faxina de quatro dias, sem falar no chocolate e na Russian Imperial Stout.

9. 10. e 11. Sex symbol, daqueles que a gente quer colocar uma foto na porta do guarda-roupa, já tive alguns do sexo masculino, nestes meus 41 anos: a) o Che (desnecessário dizer, dada a declaração precedente); b) o André Matos (eu vi 91981371sjuew888etwa4748132148 vezes o DVD da Shaman, o ritualive); c) o Oscar Wilde (não importa que tenha morrido em 1900 --- era gato e era gay, ou seja, charmoso e inteligente. Não tem coisa mais sexy do que o talento e a inteligência, numa pessoa); d) o José Miguel Wisnik (alguns já sabem, de outras declarações); e) o São Jorge da Capadócia (porque, né, coisa mais linda). Vão protestar que não há nenhuma mulher na lista? Lá vai: (eu me apaixono muito por mulheres, e as mulheres pelas quais sou apaixonada já têm a sua imagem tatuada numa parte tão interna do meu corpo que não é necessário olhar um pôster). Mas, enfim, as mulheres que eu acho mais lindas e incríveis, na vida, são: a) a Fatoumata Diawara (pela Deusa, que mulher), b) a Anoushka Shankar, que é a mulher mais bonita que habita o Universo, neste momento, c) a Clara Nunes (também já sabem, de outras declarações); d) a Ana Cristina Cesar, óbvio (pra quem já leu meus livros, é bem óbvio; ou, não sei); e) a Déa Trancoso, mds, que diva; f) a Renata Rosa, que é uma linda, assim como a Alice Ruiz, que está para além de qualquer número ou letra; g) a Jarid Arraes (pah, meus alunos agora vão desconfiar das aulas, mas ela é maravilhosa, pfvr, né); h) a Clarissa, que é uma personagem, mas não importa, eu pegava, igual. (A minha ex-namorada e melhor amiga não tem Facebook, ainda bem!, e a mulher mais bonita do meu mundo -- que é bem mais importante do que o Universo -- até poderia ver, pela timeline, mas não veria, porque ela é muito ocupada; mas eu ocupo uma partezinha do seu coração, de certeza). Ai, sex symbols, pq vcs vêm à memória agora, no final de domingo mais solitário do ano? Freud explica, Lacan também; Reich, nem te digo.

12. Não sei o que é mais interessante, se a voz ou a imagem, numa pessoa. Mas o Che era muito fotogênico, além de bravo e sexy e consciente. Nem falei do Maiakóvski, meu maior muso -- para quem eu rezo, quase toda noite. (Eu rezo para e com Baudelaire, me julguem, tenho o coração desnudado). Já sabem, também, que o 'Sobre isto' é o livro mais dolorido da estante. Vem cá, meu urso. Vamos terminar a faxina, e dormir. (Eu vou dormir com protetor de ouvido).


#declaraçõesdesnecessárias (dia 36):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2962277037140783

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2962523613782792

*



DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 37, 15 de junho de 2020)

1. O frio não é psicológico. Não ocupa espaço. E, mesmo assim, atrapalha o pensamento.

2. Não sei o que não seja psicológico, se sou eu esse eu que sente e pensa, aqui. Ainda assim, o frio vem de fora.

3. Não sou sempre eu, nesse eu. Há outros, e outras, pensando, enquanto o frio deixa entrar um pouco de ar aqui, e me acorda de sonhos doloridos. Os outros eus do meu eu ocupam tanto espaço quanto a papelama retirada das gavetas. Despensada e dispensada.

4. Só sou eu porque há outras e outros; senão, seria universo.

5. "Ana Cristina era persona; eu, personne". É um trecho de um poeminha que está entre as poucas coisas que escrevi e que gosto, apesar de ter sido eu quem escreveu.

6. Não sei se eu li Pessoa demais (ou cedo demais) na vida. O fato é que esse tipo de passagem: "Quando quis tirar a máscara, estava pegada à cara", entre tantas outras, acaba estruturando não só os meus trabalhos, quanto os outros dos outros que não sei não ser. "Meu coração é um balde despejado."

7. Usar a interface contra a própria interface é uma proposta difícil e arriscada. À revelia do frio e das decantações.

8. Há preços a pagar pelas próprias propostas, porque personas, Pessoas e este meu eu, personne, no fundo, não valem mais do que um despensamento.

9. O frio enfrenta o meu edredon azul - que mesmo não pensando, vence a disputa entre o ser-ou-não ser psicológico, a dúvida e a dor de cabeça.

10. O amor é uma espécie de edredon azul que pensa e, porque eletriza, ensina o eu a se outrar. Sair de si é uma forma de existir.

11. "Existir como quem se arrisca", outra passagem que me aquece, agora, de um poema solar de João Cabral, que baila andaluziamente entre um edredon azul e as páginas da memória. O bom da memória é que ela não ocupa espaço.


#declaraçõesdesnecessárias (dia 37):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2964703250231495

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 38, 16 de junho de 2020)

1. Já estou cansada, esfalfada, combalida, fatigada e morrida às 20h30min.

2. Nobres assuntos que ocupam espaço no HD: qual a relação entre "babosa" e "baboseira"?

3. 0+0=0.

4. 1+1=2.

5. A declaração anterior me lembra nós dois --- mas, nós dois, com um zero no meio. O zero era o sol e/ou a lua.

6. Soube agora que este exercício de escrita já deu cria; faltando apenas dois dias de declarações, aqui. A musa Andreia Laimer começou as dela.

7. 7 (que é número de sorte) + nós dois = uma espécie de paraíso, que é o lugar onde geralmente estamos (ou estaríamos, se estivéssemos) juntos --- com um zero no meio, e uma lua bem cheia e um sol amarelo ou só um zero mesmo, noves fora zero.

8. 3+8 (dia 38)= 11, que deve ser um bom número, também, já que 11 (1+1) = 2. É dois, nós dois, de novo.

PS.: Encerro por aqui, para não ficar monotemática com isso de "nós dois em um" e um zero (se à esquerda ou à direita, também não sei, porque é zero). Falta ainda a historinha das 4x4 = tração nas 4 rodas, mas hj não posso contá-lá pois já me sinto estafada, morrida e desvelada, dada a declaração número 1. Amanhã, ou depois, eu conto.

#declaraçõesdesnecessárias (dia 38):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2967301689971651

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 39, 18 de junho de 2020)

1. Falta apenas um dia para acabar este exercício -- através do qual me propus a postar ao menos três declarações desnecessárias por dia, durante 40 dias, nesta rede social. Mas nem a quarentena tem 40 dias, nem o exercício, um dia, acaba.

2. A declaração número dois continua me lembrando de nós dois, ou seis, ou quatro, mas não vou nem começar a contar; pois, de tanto zero, no meio de nós dois, vou querendo um infinito de luas e de sóis, bem vivos. É fato, entretanto, que dois cachorros brincam melhor que um, na areia; e que são três, contando com o dono deles; e quatro, contando com o galho com o qual brincavam; e que era vivo e lindo olhar pra eles, vivo como nós dois, apesar dos zeros do mundo, e das luas, e dos sóis.

3. Já sabem tudo que não sabem; mas, declarei, mesmo assim. Se eu não declarasse nada, saberiam o mesmo tanto. "Cada um com seu cada qual e cada qual com seu cada quanto".

4. Já me pongo un po nerviosa con el término de las declarações. Preferiria não, preferiria outro governo (hay gobierno? soy contra), preferiria presencial, preferiria não preferir, não ser nada de meu, e ser parte do todo, apenas, sem os à-partes, mas com aportes. As artes de ser e não ser não são nossas, mas nós somos, e precisamos fazer algo com isso. Que é tanto, até. Ou, no mínimo, é o que dizem. Nos dizemos.


#declaraçõesdesnecessárias (dia 39):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2970081716360315

*


DECLARAÇÕES DESNECESSÁRIAS (dia 40, 18 de junho de 2020)

1. Pela manhã, ouvi o carro do ovo, lá fora, e vi que o mundo gira: era um carro do ovo com a voz do locutor do carro do sonho (o sotaque do interior não confunde) e, pasmem, oferecia trimania, também (30 ovos gigantes, aceitamos cartões de débito e crédito, direto da granja, para você concorrer, aqui no carro do ovo). Senti isso como sinal de sorte, assim, no último dia deste exercício, que começou com uma declaração sobre os carros do sonho e do ovo -- que, afinal, se fundiram numa só aposta.

2. Cinco lindas laranjas sorriem da bancada da cozinha, tão belas quanto amarelas. Já foram higienizadas.

3. Se me hacía tarde, ya me iba; siempre se hace tarde en la ciudad. Cuando me di cuenta, estava vivo, vivo para siempre, de verdad. Yo quiero salir, yo quiero vivir, quiero dejar una suéeeeerte de señal.

4. Não há nada na declaração de número 4; há, porém, 4x4 motivos para declarar que a historinha da tração nas quatro rodas não será contada. Quem quiser, que pise no acelerador e faça as suas declarações, morro acima, pandemia abaixo, com vento na cara, que é o melhor que tenho a lhes desejar.

P.S.: Nadie tiene a nadie. Todo empieza sempre una vez más. Yo no sé donde va mi vida, yo no sé. Yo te tengo a vos, dentro de mi alma. Chau, hasta mañana.


#declaraçõesdesnecessárias (dia 40):

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/2973165022718651

*


 

 

DESDECLARAÇÕES

Durante esse período de isolamento, dediquei-me a um exercício de escrita, aqui, as minhas #declaraçõesdesnecessárias. Todos os dias, durante 40 dias, fiz, no mínimo, três declarações ---- as quais propunham o 'desnecessário' como 'inutensílio' mas, ao mesmo tempo, margeavam um certo nonsense, um absurdo, talvez, que povoa, também, as nossas timelines. Isso, de um jeito todo meu, na exposição difícil de 'si', na criação de personas que o Facebook provoca. Minha motivação inicial estava alinhada com a vontade de investigar a escrita e seus processos dentro do campo das artes midiáticas, procurando alicerçar meus gestos de escrita na noção de interface da rede social, sempre com o desejo de torcê-la, desviá-la, provocá-la de algum modo (ainda que tímido, e sem uma ideia precisa a respeito do resultado --- ou seja, como experimentação). (Uma série de textos-imagens chamada Da linha do tempo, que fiz há alguns anos, iniciou esse percurso criativo-investigativo.) Essas ações estão completamente imbuídas das noções que vêm me povoando através da minha pesquisa sobre a poesia e o campo expandido. Pois bem, para completar o mosaico, colocar mais água no feijão, expandir a trama, provocar novas dobras, puxar mais linha, passarei a me dedicar, a partir de amanhã, a um novo exercício de 40 dias, as #desdeclarações. Esse exercício parte da ideia de que se pode escrever com imagens. Por isso, será realizado, também, no Instagram. A ideia é que continuem, provocando-as, as #declaraçõesdesnecessárias, inaugurando uma fala|imagem feita com as mãos, na matéria "inútil" do caderno de desenho, como esboço, anotação. A cada dia, durante 40 dias, postarei uma desdeclaração, talvez anti, talvez a, talvez in, quem sabe out, mas sendo.


Adendo:

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/3045714062130413

*

Comentário e anúncio da continuidade com as #desdeclarações:

https://www.facebook.com/telmascherer/posts/3053203814714771