segunda-feira, 29 de julho de 2019

Poemas do livro O sono de Cronos

Saíram no Ruído Manifesto quatro poemas inéditos pertencentes ao livro O Sono de Cronos, no qual venho trabalhando aos poucos, conforme da pintura se desprendem palavras.

http://ruidomanifesto.org/quatro-poemas-de-telma-scherer/?fbclid=IwAR0IZjCl9-BySJPEvOcB28Qf_yi1DEMdFRXjvgQ7UiCsBrbjZ9Q3jbJBrKg

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019





essa escrita sobre tela < que se alimenta de livros rasgados, de gritos que não dei, dos esvaziamentos, da falta de sexo, das gírias do gesto > é o que me mantém & sustém sobre os calcanhares. não fosse isso, seria o que? não sei. me ensinaram a pensar que tudo sempre poderia ser pior. mas eu tendo a teimar que poderia ser sem medo.












E como fôssemos inimigos, eu e a superfície, a localidade das sombras se esquece em nós de nutrir qualquer coisa que fosse remediável. E assim sorvemos a madrugada, entre catracas e algum analfabetismo. Mas existe algo que vomita no fim da linha. Que se move e acerta o passo com os vigias. Fogem como amedrontadas todas as possibilidades de dúvida, e me perguntam se eu vou, se eu não, se talvez, discretamente.





Estou tentando de todas as maneiras, mas não é porque sou livre para me testar --- estou tentando porque as linhas puxam, sim, para baixo, âncoras que eu não amo, e as minhas asas teimam, teimam em recomeçar, a cada sol que veio e que não veio, a cada voo que te leva e traz --- e as asas são banhadas no sempre suor desse meu corpo tenso, que está sendo alguma coisa que se faz. Estou tentando, sim, para parar na rede e ler um livro, e as linhas puxam, e o peso apruma, e eu não sei quem colocou aqui essa espécie de nevoeiro que de repente solto pela respiração tentando entender que as linhas mancham tanto quanto as lamas e que as lamas estão lá fora mas as sinto escorrendo desde o meu ventre: para o mar, para o mar, para o mar. E o mar de repente dorme na minha rede e surge algo crustáceo, como um nó do nevoeiro, como uma bruma, como um letreiro todo escrito em letras de ouro e é numa língua morta, a língua dos abraços, e os voos partem, e os voos vêm, e as letras linhas de repente são tudo o que tenho, mais as manchas.






A tela inconclusa clama na calçada por onde vago em beiras de lagoa, canta pelos degraus dos coletivos, grita seus gritos inauditos pela sala, sente saudades do meu corpo zanzando sobre ela, lançando esses olhares verticais que queimam a sua superfície quando estou um pouco insatisfeita com esse azul. A tela abandonada urge em lamber as poeiras que sobre si se acumulam porque eu não estou. Ela reclama e as outras a ouvem em silêncio, sabem que não há mulher em casa, por isso esse silêncio, elas sentem as suas superfícies surradas na solidão dos empilhamentos, do esquecimento de tudo que reina quando há rinhas entre páginas de várias línguas e em bolsas de roupa sendo carregadas pelo asfalto. As telas acabadas se conformam. As inacabadas sonham um dia ser bolsa, um dia ser creme, um dia ser chinelo de dedo, um dia ser alguma pele que se pode tocar sem precisar carregar tanto peso, sem sentir essa leve insatisfação com aquele amarelo. As telas apenas começadas se refletem nas águas da lagoa e me apanham em calçadas, causando dores no joelho direito, espasmos de espanto, vontades de beber mais uma cerveja, esperas várias.



Esta noite sonhei que andava de bicicleta por espaços todos brancos.
As ruas de brancura pelos dois lados, acima o céu branco.
Uma professora de filosofia me dizia:
– Comprei um apartamento de quatro quartos.
– Quatro quartos?
– Sim, todos só para os livros.
Eu me despedia e continuava meu caminho, à frente percebia que estava mesmo pedalando pelos espaços em branco das páginas.
Parece que a professora morava na mancha de texto, seu apartamento. E eu pedalava pelas margens.






Um dos textos que está no livro Entre o vento e o peso da página.