Rumor da casa




Hoje tive alguns pendores
com aquela Ana Cristina.
Ana Cristina era persona.
Eu, personne.
Ela, cansada de ser homem
tirou luvas de pelica, delicadas

e foi chorar no banheiro.


Isso eu faria, não fosse porca.


Em Lajeado, uma porca matou homem.
Ela dava a luz quando acudiu o agricultor.
No culto da criação, ele era demais.
Ela devorou muito da sua carne.

Sobre o porquinho, ninguém falou.

Talvez por isso eu seja pouca
devorando cartas, maus poemas
e cassetes bossa-nova.

Quando me amansarem,
serei Pessoa nenhuma.








frames do vídeo Rumor da casa, Telma Scherer e Danielle Sibonis, 2013, 10min54seg




Vó Elza cuidava da casa
mais do que dela mesma.
Ela era a casa.
Seu crochê lhe envolvia na copa,
nas cortinas, nos armários.
Ela se tecia.
Vó Elza servia na casa
como linha na almofada.
Não lhe faltava nada.
Sempre achei
que os fios entre seus dedos
não passavam
de cordões umbilicais.



Romance

Ela arde de sol ao meu lado.
Maquiou-se de Clarice e nada vale.
Será sempre a mesma e pura Telma.
Outro dia comprou flores no mercado.
Juntou legumes para a manhã sozinha.
Não era foto, imagem nada,
era só uma vaga, prenha, lúcida
mordedora de maçãs na feira.
Entretanto, pousa o papel colorido.
Pensou em dar presente aos parentes idos,
em massagens e crochês na fábrica da família.
Pensou em arranjar-se com um daqueles vendedores,
ter filhos gordos e dezenove anos.
De nada valeu.
Continuava o mesmo ventre sobre as ruas calçadas,
agulhas de crochê nas glândulas,
o suor no lotação, a mesma e pura Clara.



Era Clara e por isso muito esguia. Doíam-lhe as costas.
Fabricava lógicas. Era a dona dos contos idos.
Santa, entornava à Iemanjá, iê iê iês de carnaval,
nem bem nem mal, cantava, rosários à mostra.
Não profanava pronomes Divinos, era insone.
Jamais ganharia uma aposta.
Se lhe fugiam os limites. Não dava palpites.
Corria para dentro das montanhas,
em páginas coloridas, ao longe,
em antanhos de papel, seus olhos cor de mel,
onde pudesse enlouquecer sozinha.



Vampira! Te afasta.
Sugaste meu sonho de pronto
quiseste beber minha luz
fizeste teu santo milagre
e eu magra carrego tua cruz?
Vampira! Te enoja.
Corre fora de ti e tua gente.
Não dança, não geme, não treme
de medo ou de orgulho.
Eu te engolfo no mar.
Eu te engulo
na boca da água-viva
no centro dessa saliva
de fogo, sua sonsa.
Vai catar a tua pedra na esquina.
Vê se te mira.
Te afasta, vampira.



Só e lívida, sorvo Santo Agostinho.

Sei que ele pregava Deus
entre o meu e o mal.

Passa da uma hora e não despi
e não dormi nem comecei a ser mundo.

Prego com o santo
um mundo dividido:

somos sós, somos caixa.
Somos homens e mulheres.

Oito da manhã, ele no interfone
finge um pedinte qualquer.

Então abro a porta.
O santo não fosse gordo, despia.

Cristo na cruz me segreda, balbuciando:
Pode pecar que não dói.

Seus sussurros são de criança vendo.
À tarde estarei limpando a mancha,

um sangue novo.
Uma dor ao cruzar as pernas

e o santo nem aí.
Mil páginas até o pai.

Mãe solteira,
busco para o número da clínica de aborto.







Rumor da casa foi financiado pelo Fumproarte/Prefeitura de Porto Alegre, no ano de 2008. O projeto incluiu a publicação do livro, cinco performances e quatro oficinas sobre poesia e performance (30ha) em várias regiões da cidade.

Os poemas foram escritos entre 2005 e 2008. A performance circulou pelo SESC/SC em 2006 e a publicação saiu pela editora carioca 7 Letras com capa da Box 3 design.





http://www.flickr.com/photos/rumordacasa/sets/


Em 2010 foram realizadas as filmagens para a construção de um vídeo com poemas de Rumor da casa. A direção foi de Danielle Sibonis e a locação o Castelinho do Alto da Bronze, uma construção em estilo medieval no centro de Porto Alegre.








Dois poemas podem ser conferidos no youtube:

http://www.youtube.com/watch?v=oDnT1M1wgUM

http://www.youtube.com/watch?v=zqdfAvb9RBo






O projeto

Poesia no papel, no corpo, na fala do outro. O Rumor da Casa foi um projeto que contemplou a poesia em várias interfaces. Performances de poesia e oficinas-laboratórios aconteceram entre 2005 e 2010, com foco na integração entre verso e corpo, entre diversas linguagens que atuam no fazer poético. Foi importante cativar o olhar do outro, oferecendo subsídios para que este fizesse o seu próprio trabalho. Ocorreram oficinas em comunidades afastadas do centro das cidades, em Porto Alegre e no interior de SC e RS.

Desde 2004, eu vinha ministrando oficinas de poesia, performance, haikai e criação poética. Fiz as performances Poiesis Desconjunto (2001), Páginas de Estréia (2002), Sarau Cênico no Hospital Psiquiátrico São Pedro (2004), Pocket (2005) e intervenções urbanas com o grupo Mimeógrafo.

Também trabalhei com o grupo Teia de Poesia, realizando saraus poéticos desde 2002. A poesia falada sempre foi um foco de atenção e desejo, que pude aprofundar no projeto Rumor da Casa, contemplado pelo Fumproarte em 2007 e financiado em 2008.





O livro parte da imagem da casa para entrelaçar vozes e figuras femininas. A principal delas é Vó Elza, que ficava todos os dias em casa, fazendo crochê. Confinamento, violência e o revidar das agulhas faziam parte do seu cotidiano.

A poesia, para mim, é um pouco como o crochê da Vó Elza: ela tecia com suas linhas, enquanto eu teço com palavras. A influência de poetas como Ana C, Sylvia Plath e Safo também permeiam o livro.

O Rumor é, ainda, o percurso de uma fala: ele inicia com a palavra “silêncio” e se conclui com a palavra “som”.

A performance

Tudo começa no silêncio de uma pequena caixa branca. Da caixa, conforme os poemas são falados, vão sendo retirados alguns objetos. 

Cada vez que a caixa é aberta, surge um fio do crochê de memórias. A casa abre suas portas diante do público, convidado a interagir.

Olho no olho, toque, interação entre performer e público. Símbolos da infância, sons ritmados pelo corpo percussivo, suor e muita movimentação cênica.

Voz, movimento, objetos cênicos e interatividade foram os elementos que teceram o espetáculo mínimo, intimista e maleável.

A performance habitou lugares como a rua, o saguão de escola, praça de alimentação de shopping, reunião de clube de mães, pátios, esplanadas, salas de aula e pequenos teatros. O trabalho circulou em SC pelo SESC, integrou programações de feiras de livro como as de Porto Alegre e Lajeado, e também a Bienal da Une, o Salão de poesia Psiu Poético, o festival Porto Poesia, a Festipoa Literária e a programação das livrarias Saraiva de Porto Alegre.







Oficinas




Procuro abrir portas e janelas para que o público entre em contato com a linguagem poética e teça suas próprias performances. A casa ouve os rumores que o outro, antes mero espectador, pode produzir nos seus interiores.

As oficinas aconteceram nas bibliotecas comunitárias da periferia de Porto Alegre, na Usina do Gasômetro e em feiras de livro, dentro da programação do SESC RS.













Mostra de resultados das oficinas Rumor da Casa, Sala Álvaro Moreyra, outubro de 2008. Na ocasião, apresentaram-se quatro turmas: duas do centro, uma do bairro Cristal e outra do bairro Restinga.





O silêncio da casa vazia.
Silêncio das mobílias, dos retratos.
O silêncio do quarto da avó, fechado.
O silêncio de papeis em branco,
de sutiãs apertados sob a blusa.

Nenhum som, nenhum prurido.
O silêncio surdo,
o silêncio ensimesmado dos mortos,
o silêncio das suicidas.

O silêncio de filhos que partiram,
e que não voltem!

Todas as portas e janelas fechadas.
Nenhum aparelho ligado.
Nenhum telefone.

Nenhum radar, nenhum cão.
O silêncio completo
a ponto de ouvir
o silêncio das lâmpadas,

elétrico.




Eu caio do medo ao caos
e vejo os vultos escuros
das mulheres assombradas.

Sarah, Virginia, Ana C.
É você ou sou eu essa dança de cordas?

Clarice, é você atrás do galho
ou sou eu que sussurro?

Somos nós, em frangalhos,
a vertigem e o soco.

Socorro, Sylvia sumiu de meu contorno
só a velha bruxa não voou deste lugar

e continuo com o cabo entre as mãos






http://www.flickr.com/photos/rumordacasa/sets/