sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019




A tela inconclusa clama na calçada por onde vago em beiras de lagoa, canta pelos degraus dos coletivos, grita seus gritos inauditos pela sala, sente saudades do meu corpo zanzando sobre ela, lançando esses olhares verticais que queimam a sua superfície quando estou um pouco insatisfeita com esse azul. A tela abandonada urge em lamber as poeiras que sobre si se acumulam porque eu não estou. Ela reclama e as outras a ouvem em silêncio, sabem que não há mulher em casa, por isso esse silêncio, elas sentem as suas superfícies surradas na solidão dos empilhamentos, do esquecimento de tudo que reina quando há rinhas entre páginas de várias línguas e em bolsas de roupa sendo carregadas pelo asfalto. As telas acabadas se conformam. As inacabadas sonham um dia ser bolsa, um dia ser creme, um dia ser chinelo de dedo, um dia ser alguma pele que se pode tocar sem precisar carregar tanto peso, sem sentir essa leve insatisfação com aquele amarelo. As telas apenas começadas se refletem nas águas da lagoa e me apanham em calçadas, causando dores no joelho direito, espasmos de espanto, vontades de beber mais uma cerveja, esperas várias.