sexta-feira, 20 de setembro de 2024




 

O Depois da água fez dez anos e minha intenção é realizar, com esse trabalho, algo semelhante ao que fiz com o Rumor da casa: uma boa revisão e retomada, para reflexões sobre os processos que envolveu, bem como sua disponibilização digital gratuita. Isso estava programado desde os primeiros meses de 2024, quando eu me dedicava à escrita de um texto em prosa, uma novelinha (já concluída), e do poema Pilsen não compensa, que será divulgado em áudio e quiçá também em livro (mas sem nenhuma previsão, no momento). O Depois da água surgiu com performances que se seguiram imediatamente ao trabalho com o Rumor da casa, as primeiras ainda entre 2008 e 2009, com alguns textos rascunhados e recursos diferentes, mais atrelados à vocalização e à música. Cheguei a tocar flauta em algumas (estudava a transversal e teoria-percepção, naquele momento), e cantava alguns poucos trechos, especialmente na abertura. Trabalhei também com alguma percussão corporal e vocal, em poemas específicos, e foi uma performance muito desafiadora e emotiva. Os poemas foram se somando e saíram em livro apenas em 2014, após dezenas de performances. Um projeto envolvendo o livro foi contemplado com o Prêmio Elisabete Anderle 2013 e, assim, pudemos imprimir mil exemplares, em 2014, junto à editora Nave. Dez anos, já! 

Tenho revisitado as imagens e os poemas há algum tempo. Acontece que as enchentes no Rio Grande do Sul abalaram esses planos de trabalhar com a memória do Depois da água, tanto pelos novos sentidos que essa série de imagens poderia gerar, num momento tão sensível, quanto pelos próprios poemas, que fazem referência a Lajeado, minha cidade natal, uma das mais destruídas pelas águas das enchentes. As cores das fotografias, os textos, o próprio título, tudo ganha outra leitura após a enchente, que atingiu, pela primeira vez, a casa dos meus pais, levando consigo objetos, memórias, afetos, e a própria sensação de estabilidade e de segurança que existia naquele espaço e seus pertencimentos.

Não, não consegui, nesses meses que separam o evento das enchentes e a primavera que inicia, olhar para Depois da água, agora, sem convocar as imagens recentes com as quais preciso lidar, e que não são ficcionais. Na última semana, entretanto, dei uma longa entrevista sobre os 200 anos da imigração alemã e, então, li o poema Lajeado, escrito em 2009:

 

LAJEADO

 

O rio é uma cobra marrom

de olhos maldosos.

Sulco escuro cravado no verde.

Seus olhos são as torres das igrejas.

 

O rio serpenteia

os ossos dos homens

os narizes das mulheres

mais duros do que as pedras.

 

O rio inventou

as casas construídas, as crianças

instruídas a tapa e violinos.

Os socos nas vozes dos loucos

sempre calados meninos.

O rio teceu de barro

nosso sangue fugidio.

 

O centro do vale é minha casa

e debaixo das suas tábuas

o passado e seus naufrágios.

O rio palpita na cama,

sou criança, temo os ratos do porão

e as vozes do pai, e a mão da mãe.

 

O rio sabe que suas matas não escondem.

Nele moram botas, sofás, pontapés

E um povo tão humano e lhano e europeu.

Assim vocês, e assim sou eu:

teutônicos lacônicos, lances de dados

dos condados da Europa:

forasteiros, filhos das putas,

das lutas com machado e enxada.

Filhos de aventura, filisteus.

 

Depois do desterro

esta terra nos reserva

brilho de céu, água de riacho?

 

Mudo, o rio chora de viés.



Praticamente todo o livro, agora, quando relido, parece se referir às minhas origens nas margens do inundado. Relembrei dos bairros à beira do rio, onde eu ia caminhar, pedalar, e onde meus parentes antigos haviam morado. As casas altas onde os visitávamos, na infância, o barro, a terra, as plantas, e o modo como as memórias que essas incursões na natureza foram reativadas quando passei a morar aqui em Desterro. Passei a lembrar de sensações infantis a partir de cheiros, temperaturas, hábitos. Esse caldo todo foi para o Depois da água, de mistura, mas também para o Squirt e, hoje, tem uma dimensão muito maior. 

Aos poucos, vou fazendo as revisões dos poemas, sentindo novamente seus ritmos e seus espantos. É incrível como o tempo transforma os textos. Talvez por isso, uma gama de leituras sobre filosofia da História e sobre a noção de tempo (conceito trabalhado no meu mestrado) veio parar na minha cabeceira.  


segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Resolvi compartilhar o texto e um pouquinho da poética da performance que apresentei no último sábado, no Festival Literário Internacional de Pomerode, que homenageou Franz Kafka. O texto foi composto para a ocasião, através do recurso de apropriação de trechos de textos do autor homenageado e de notícias atuais, além do poema "O pilsen não compensa" (poema composto nos primeiros meses deste ano).

>
É dia de Kafka – performance 14/09/2024
(No palco, os colegas acabaram de falar sobre a tradução dos "Últimos contos curtos" e sobre a edição das obras de Kafka. Ao fundo, inicia o vídeo com imagens de Depois da água (2014): nas águas da lagoa do Peri, levemente amareladas, passam objetos, papéis com anotações, desenhos e trabalhos que evocam memória. No espaço, estão alguns desses pequenos objetos, também sonoros: conchas, um piano de caixinha de música, apitos de chamar pássaros. Levanto do meio da plateia e começo a realizar pequenos movimentos com os braços, como pêndulos. com os braços soltos. Subo, visto um moletom preto, de onde tiro a lanterna, que acendo para seguir o texto, que será cantofalado.)
*
o fim é o fim é o fim do fim do mundo depois de depois de depois do fim do mundo o fim do mundo é aqui é imundo e mudo o fim do mundo atrás é para trás e para a frente é mais pra frente é mais e para e para e é mais e para para para a frente é presente o presente é mais e apresente o presente e para trás é atrás é atrasado culpado é julgado é errado é mirrado surrado é inútil é nato | através da voz da vez da voz que não vem a vez da voz nunca vem quando chega a minha vez? quando chega a minha vez? há voz? estou na fila é o fim da rês é o fim do mês da resposta é aposta o respiro da ostra pira na pira quente do mundo aguente depois de depois de depois do fim do fundo a fumaça há fumaça a fumaça da dança das traças atrasas a vez da voz onde há voz há vácuo de vezes sem conta a voz não conta a voz cala a calada da guerra de depois da guerra e na guerra não há voz nein nein nein não é vez da voz doch natürlich natürlich natürlich tim-tim vamos brindar a ti atchim! achten achten achten achten auch die Augen auch die Augen ai ai ai doch ai dor ai dói outdoor de todo dia a fumaça é de todo dia e não chegou a minha vez a vez da voz da vírgula a gula do vácuo do out out out out na torre do rato nato no ato o rato nato no mato não não há mais mato nato nato no mato mato mata quem? é mata Durgue é mata Kali além é hey ma hey ma mamata não mamata não é má ma ma mamãe é má mamata não mata e cala ali mata o mato no ato o mato dentro mata adentro mata não mata não mata não a facão a facão não não não alemão na mata há 200 anos na mata abrindo o mato na mão hey ma hey ma hey ma e quem mata o rei mata o rei mamãe é má mamãe é má é mata Kali é mata Durgue é mata queimando mais é mata queimando queimando queimando queimando quem manda aqui? quem manda a queimada mata mais quem manda mata e manda aqui quem manda aqui? quem manda aqui? quem manda quem mata manda e quem diz que a mata é má? quem diz que a mata é má? cala cala cala cala e queima quem queima a mata cai e cai e cai e cai quem é que cai na mata? todo dia é dia de Kafka de cá ficar de cá ficar é dia é dia é diferente todo dia é diferente e todo diferente cai e sai e sai e sai e sai é o deferente o diferente é deferido é proterido é traído é sabido é arquivado aqui do lado não aqui não aqui não aqui não não tem quem sabe mais sabe mais sabe mais não sabe não não não não agora assine aqui que o senhor está sendo processado saindo armado processado e processado é armado e é amado e assine aqui há sina aqui assina aqui a sina que assina é assassinada aqui a sina é quente um pouco é quente e queima e guarda a guarda e aguarde um instante por favor por favor por favor aguarde no fim da fila um instante-fim afim afim do fim da fila afim na fila afim de um momento um momento um momento que há fila há fila há fila filha da mãe não é mamãe é quem mata quem queima quem queima é pai e pai de pé de pá da paz não é mamãe é rapaz da mata é mata e mato adentro dentro é mato ardendo e mata adentro a fila é fim é fim no fim no fim no fim no fim do mundo | apenas um instante um momento por favor a torre de comando está armada e mata mais mata no mando mando humano bando humano humano já foi humano a mata cai aguarde mais um instante depois do fim do fim da fila e vai e vai no vai vai vai que cala e cai a calada nas achas se acha ela se acha não acha não um instante por favor aguarde na fila da lenha não tenha pena não pena não pena não não tenho pena eu tenho medo medo eu tenho medo medo o mundo é estreito é apertado eu tenho peito é apertado o despeito é apartado é cheio de portas aqui é a horta é a hora parida aqui é perdida assim é assim é assado no ato estreito o mundo é estreito o mando é estreito eu tive medo eu vim mergulhado na noite da boite do boi do ai do si do sai do Sein do ai do ai ai ai ai vigiando dizem vigilando dizem cochilando dizem dizem dizem que é o disse que disse que me disse que diz quem disse que a nobreza sai da lei da nobreza da lei do assine aqui confira seus dados agora a sua senha é MEDO e tenha a senha aqui fica aqui fica aqui fica aqui que aqui é quente é a lei é da lei da pureza aguente a cerveja podre a cerveja é quente se a água é podre a cerveja é ruim se a água é podre a cerveja é ruim é a poça é podre é a multidão a poça é podre é a podridão essa não essa não a noite é sem lei a boite do boi do bom do boi que queima é o boi que queima queima queima queima queima se a água é podre a cerveja é ruim é ruim pra mim é cerveja azeda a senha do pilsen o pilsen já não compensa azeda a meta é mera dobra a mera megera a dobra e mega meta agora a firma da firma do fim por favor assine aqui aqui não aqui não aqui não tem na porta sempre fechada não é nada não é nada não é nada não é sentença padrão é defesa a festa é quem pega e pensa é a ponte pênsil assine e calcule a alíquota da cota do fim é afim é afim na porta sempre fechada não é nada não é nada é a cota da grota na boca a garota da bota da rota da nota e vota e vota é devota e voa e a proa do time o timão a profissão da fuga a sonata do sono da sua que sua a suma da lei que suma a suma da lei da soma que suga a luta da lei é lá na noite de boi pois depois do mundo e depois do fundo há olhos e ouvidos e uma nuvem de fumaça e medo

(Termina o vídeo. Tiro do bolso do moletom um pequeno realejo e giro a manivela, soa a canção enquanto o vídeo mostra um lenço branco na água e os sons de respiração forte.)

uma noite de fumaça e medo
mas não levem o medo pra casa
gute Nacht obrigada

(Recoloco o realejo no bolso e saio. As luzes se acendem. No palco vazio, estão os pequenos objetos que apareceram no vídeo.)




Segue o vídeo de 2014, realizado para o lançamento do Depois da água via prêmio Elisabete Anderle em parceria com meus então colegas de Artes Visuais da Udesc:



Foi um desafio intenso realizar essa performance recente, tanto por estar bem distante do palco há um tempo, e por lidar com matéria tão aturdida quanto os textos de Kafka e as manchetes atuais. Utilizei as imagens dos vídeos do Depois da água no contexto de várias ações que venho realizando nesse momento, de reativações de memórias e refazimentos dos meus trabalhos mais antigos. Estou revisando os primeiros livros, para distribuí-los digitalmente de forma gratuita e licenciá-los em Creative Commons, também com o intuito de criar segundas edições. Descobri dores inauditas no Depois da água, pelo modo como os recentes acontecimentos das enchentes na minha cidade (Lajeado/RS) mexeram com memórias, afetos e cristalizações.

terça-feira, 9 de julho de 2024

Reativar: ação

 

Estou reativando algumas páginas aqui do blog, revendo materiais, fechando originais que estavam abandonados e arrumando a casa|arquivo dos meus trabalhos, aos poucos. São inúmeras as ações necessárias para dar curso aos novos movimentos desses processos, muitos deles sem guarida e sem finalização há mais de década. Na semana passada, retomei colagens em alguns livros de artista que estavam parados desde 2018 e -- quem diria -- finalmente, eles encontraram a solução que era a deles. Recortei muitos livros mortos, entre eles um belíssimo exemplar todo esgualepado de uma enciclopédia publicada em 71. Quatro telas em finalização receberam os recortes do mesmo volume dessa Conhecer que não se publica mais. Dos livros mortos, vou fazendo coisa nova, dispondo a contrapelo as vidas resistentes entre tempos destroçados. 











Nos últimos dias, venho trabalhando o pdf. da nova edição do Rumor da casa que sairá em formato digital gratuito, com atribuição de domínio público. Reencontro dramas, poemas que não parecem transcriáveis em texto, que existiam como performance em outras materialidades. Alguns deixo para trás, outros recordo de cor (de coração) para inserir nessa versão digital, outros repenso, 20 anos depois, como sementes de trabalhos que realizei de lá pra cá, perseguindo promessas. É bom olhar pra trás e perceber que aquilo, se não tem o valor estético avulso que eu gostaria, vale pelo que irradiou e incomodou, gerando novos movimentos. 

Entre os processos recentes, está o de um poema longo, em 12 parágrafos-movimentos, que pretendo finalizar em áudio e disponibilizar online como podcast. Um poema sem pontuação, que namora com a prosa, mas foi composto em regime de entoação, com trechos cantofalados e cantados. A ideia é que ele circule em um audio, uma faixa para cada movimento, mas faz sentido mesmo é no conjunto. Esse poema foi inteiramente composto agora em 2024, junto com uma novela que escrevi e fiquei sem coragem, por enquanto, de reler. De molho em molho, nessa ilha fria, lá se vai a metade de mais um ano já tão maculado pela violência das águas. E pretendo ainda, nos próximos meses, fechar essas novas versões também do Desconjunto, que fez 20 anos em 2022, e do Depois da água, que faz dez anos em agosto :-). 


quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Pré-venda do livro "Não alimente o escritor - a escritora"

 


            Vai sair o meu "Não alimente o escritor - a escritora" na coleção Quem dera o sangue fosse só o da menstruação, da editora Hecatombe / Urutau. É um poema que aborda os acontecimentos vividos por mim quando fui detida, durante a realização de uma performance, em Porto Alegre, em 2010. Na ocasião, fui escoltada por dez policiais e duas motos e conduzida em uma viatura até a delegacia, debaixo de um grande tumulto e consternação do público. Vocês podem imaginar que uma experiência como essa não fica quietinha e incólume, nos dentros da gente. E eis que, uma década depois, consigo finalmente chorar (chorar mesmo, de lavar o colo e molhar a blusa) ao revisitar, agora garganta aberta, os ritmos que se guardaram no corpo, e ficaram aqui, reverberando, inauditos, incomodando tanto.

         Publicar esse livro é, também, uma oportunidade de agradecer publicamente a cada uma e cada um que teve, naquele momento, e depois, um gesto. Foram muitos, também, os que compreenderam o que poderia estar por vir, mesmo num ambiente em que a cultura da aniquilação e da bota-na-cara não eram tão visíveis quanto hoje: o fascismo dormia, debaixo das camas. Não pensem que os recentes acontecimentos não influíram na vontade de publicar esse poema-denúncia, cheio de memórias espinhosas. A truculência e todo o ambiente cultural que a alicerça já estavam lá, em semente, naquele episódio.

         Foram dez anos difíceis, para mim, quase impossíveis, apesar de tudo que se seguiu. Tirei energia, não sei nem de onde (do mar? do amor? --- da poesia, principalmente), para me refazer. É claro que, naquela noite, o tempo virou, e nunca mais voltei ao estado anterior. Mas ele vive, em mim. Vivi o mau tempo se armando, com meu corpo dilacerado, impedido, detido, cerceado, depois atormentado por todas as estratégias de difamação e de diminuição de quem eu era e do que fazia. Corri o risco: enfrentei. Paguei o preço. E enfrentar-se com essas estruturas não é fácil. A gente sai ferida, e é de fera machucada esse poema, que deu conta de expressar sentimentos difíceis, procurando também colaborar para a reflexão sobre autoritarismo e violência contra as mulheres.

        Sou é grata, agora, pois encontrei espaço, esses anos todos, no estudo, e na vontade -- fui seguindo, trabalhando, trabalhando, trabalhando: me aprimorei. Estou aqui, feliz por poder dizer, agora, o que precisa ser dito. E que eu digo com sangue, sim. Porque tem coisas que são assim: uma hora elas arrebentam, molham a blusa, explodem e espocam. Num tempo com tão pouco espaço para a lentidão, lanço um livro que é arrebentação de década (e o próximo, também será), na certeza de que o tempo lento é bom de se viver.

         Este é o link da pré-venda: https://benfeitoria.com/n%C3%A3oalimente.


sábado, 12 de dezembro de 2020

add ad infinitum



A adição de infinitos a uma jornada definida pode, às vezes, causar certo enjoo; no entanto, não deixamos de recorrer aos objetos transcendentes, sempre que o presente é pouco.

domingo, 25 de outubro de 2020

 

Como um poste que vomitou escombros, meu corpo de pé na calçada, equilibrando no ar uma fala enviada e recebida, erguida como um não, não um falo, uma fala, visualizada e nunca respondida, aflita como uma saia, andando rápido, agora, agora copiando os passos, pliê, granpliê, degagê, já exausta, justaposta aqui entre os júris, sustentando os joelhos, e o público que grita: ela sim, ele não, ela não, por que sim?, se quiser gostar de mim, sou afim, entre sussurros doloridos, dizimada como uma casa, cuspida em caliça, aflita como uma sala, mãos ao alto, pés no chão, um salto, sempre depois do pliê, passê, degagê, developê, e gira.

domingo, 11 de outubro de 2020


 Detalhe da tela “Casa grande & o Brasil que eu não quero”, 100cm x 100cm, realizado a partir de um conjunto de imagens de livros, especialmente a versão em quadrinhos de Casa grande e senzala.


  

Nos vimos

no meio da pandemia

preparando

peitos em punho

para enfrentar

com porradas

e sustenidos

aquilo

que não se podia pensar.

Nos vimos

no meio da pandemia

e nossos olhos

fervilhavam medo,

e o medo ia até os dedos,

e as nossas vozes vibravam

pelo espaço

como trovões, trovoadas.

No meio da pandemia,

em vertigem,

a verve

dos verbos

se misturando,

se línguas,

alheias aos riscos

da verbalização,

porque as nossas

eram línguas mortas

e antigas

inscritas

no sabor dos ventos

e contaminadas

na memória

desde os cemitérios sambaquis.

A rua

era o perigo de sempre,

perigo de se respirar,

mas agora

se pode pixar

sem contratempo

no meio das madrugadas.

Um baile de máscaras

autômatas

ia e vinha, veloz,

as sombras não nos ouviam,

mantinham distância,

e nós

nos conservamos, também

há séculos

dos outros desses outros.

No entanto,

nos quilômetros

do nosso pixo

propúnhamos o instante.

Nos vimos, assim,

em pleno desespero,

poemas de fogo fácil

em espiral

dispararam

do centro do nada

que agora éramos

sem saber

se se pagam as contas,

se se compram

panos

para costurar as metades

de nós mesmos

com os nós dos outros desses outros,

ajudando com as máscaras.

Caçadores

de borboletas, que éramos,

e de nós mesmos, dos vazios

que vão de um galho a outro,

propondo sentidos

que se despedaçam, só pudemos

propor que tudo passe, e passa,

para podermos

transar com Pã, a sós

dos nós de nós desses nós mesmos

numa espécie de vazio de fábula.


domingo, 20 de setembro de 2020




 

 

Uma mulher

sozinha no apartamento.

 

No frio do carpete sujo

que aquece os pés,

nua. Completamente nua,

sentada,

olhos que se evolam

pelas paredes,

vitrais do quarto.

 

O computador faz ruídos, às vezes.

 

É esquia e magra:

vazia

é tia, avó, irmã, sem nexo.

 

Está nua e só frente às máquinas.

Não há faunos. Florestas foram

concatenadas

no seu pensamento.

 

Em que pensa uma mulher

sem cajados

sem vestido branco

na brancura da pele lisa?

 

Seria mais de meia-noite

e haveria livros pelo chão,

todos abertos:

 

ela abre a página,

mói o livro

joga o livro −

 

e vem sentar-te ao meu lado, Lídia.

 

− Ela vigia o branco

pelos espaços de folhas

entre linhas tão correlacionadas.

 

Ela saboreia relações, depois:

joga.

 

Joga fora,

no chão acarpetado

do apartamento,

joga e ri.

 

E vem sentar-te

à minha frente, Lídia

não sou tão máquina

que não possa causar

no teu ventre

um espasmo cheio de palavras.

 

* primeiro poema do Desconjunto.






 

Um cálice eterno  − eternas férias.


Voos de percevejo

por debaixo dos colchões.

 

Areia movediça

em sons e fúrias do sono

sob os pés que abrasam, no peito,

o vexame de ter dito améns.

 

Etéreo milho

estalando por entre os joelhos

que ainda com os pés me pisam

no sono-verdade dos tempos

 

em tempos, se abrindo e fechando,

matéria noturna das horas.

Pelas paredes, tudo pesa,

 

a malemolência dos minutos

desgasta-se em sons, fulminando figuras

de baratas amarelas entre cartas

nadando

no pó

 

ora líquido

dos passados.

 

E os sentidos, não invento − espreguiço.



*poema do livro Desconjunto, de 2002, revisto em uma manhã de domingo, em 2020.

sábado, 12 de setembro de 2020



eu fiz um colar de estrelas com as cordas do baixo acústico, e ressoavam na sala durante as tardes intermináveis dos meus vinte anos. fiz um vigésimo de segundo, sussurrando estrelas ao som dos meus vácuos, e vi, assim, um sussurro estrangeiro se desfazer nas rusgas do momento em que me vesti, colar, colo, coisa à toda como a presença das estrelas no meu peito, miasmas, minúsculos de momentos distendidos, como a luz nos cadafalsos.

e correntes elétricas estrelaram meus dentros feitos de esquemas e de listas de constelações escondidas dentro das suas calças. como circunstâncias encaçapadas nesses momentos nos quais espocam as luzes de dentro dos seus olhos, como cismas de cachoeiras. a gargantilha das marcas da sua língua no meu desejo constela como coisa à toa nas esquinas que rebrilho entre nós dois. e esses olhos, os seus, que me sugam por dentro, desatinam de estrela sobre os prédios dos quais me jogo para o centro do seu peito que se despede.
seu peito inerte para os meus desejos trama o tempero das quedas.
*
*
*
fiz esse poema, que não pude revisar, em uma noite de sexta (ou seria quinta?), sentada, a sós, no Tralharia, ao som de um jazz, quase verão. e quem diria que as cordas continuariam, agora que o bar fechou, soando como gongos aflitos, no meio dessas madrugadas em que não se pode sentar para escrever em um bar? um dos meus receios, ao me tornar professora, era o de ser flagrada constantemente nessa condição, que era ainda mais frequente quando morava em POA: a de procurar o burburinho das gentes, para me concentrar. eu gosto do ruído rosa que se forma ao som dos risos de um lugar lotado. escrevi meu réquiem para Roberto Piva num lugar assim, mas bem pé-sujo, como deveria ser, dada a minha pobreza. agora brindo ao espírito mundano no meio da quarentena monja: que o poema nos traga, aos tragos de Maiakóvski, um pouco de futuro, de brisa, ou de baixo acústico.








A foto da pintura não é pintura; e a própria pintura vive em mim do poema, apenas. O que o poema declara, a mancha de tinta desdeclara, com um certo cinismo e dor nas costas. Mas o que desdeclara o poema, o que é que dispara nas circunvoluções da mente, o que ele dança, onde faz pausa? Essa pintura, no fundo, é música, composta a partir dos ecos de um trompete reverberando a infância, quando o pai espalhava seus agudos pela vizinhança. E percute os gritos das crianças, cada martelada da perene construção ao lado da casa onde vivo, no final de uma rua meio mal calçada, no Campeche, onde os aviões às vezes passam, às vezes pausam.



 

terça-feira, 1 de setembro de 2020



 

Subimos as escadas
do farol
para ver a paisagem.
Os leões
ficaram lá embaixo,
fazem xixi amarelo.
Ouvimos os seus gritos
soados
na era dos dinossauros.
Sua pele combina
com as pedras
manchadas em alguns pontos
onde os leões
se aninham, nojentos.
Eu, você, sua pele combina
com o rugido dos bichos,
seus cabelos
se enredam
ao pé do vento
onde subimos,
para ver a paisagem.
Você já viu tudo, e senta
no último degrau, me espera
como uma criança
enquanto faço as fotos
que você nunca verá.
Sua face, assim, sentado
combina com o farol, no topo:
você combina o tempo todo
com esse medo de cair
se me alongo mais um pouco
para fazer um close
no leão lá embaixo, um porco
que urra e de repente é você
que solta a gosma da boca
enquanto se move, um vagar,
e se ajusta na outra pedra.
Você e esse leão, tão amigos,
já viram tudo, já fizeram
tudo o que quiseram
comigo,
já mijaram no vento amarelo,
dormiram no ponto
onde o sol se põe
e vocês combinam, sim,
já combinaram
de me ver cair,
o leão marinho
e você,
meu urso,
um urso apenas
de passagem.

C

terça-feira, 31 de março de 2020

eu não sei escrever a máquina
a máquina com a qual escrevo
é meu próprio corpo
escrever é ser sua própria máquina
todo o ser é sua própria máquina
eu não sei maquinar
o sistema judiciário de mim mesma
onde não há provas nem calendário
eu só sei desescrever
meu próprio estado de mim mesma
eu mim mesma má
eu mim mesma máquina
eu mim mesma o eterno calendário
de meses se sucedendo
com dias abertos dias fechados
dias azuis de pés burilados
e dias para balanço
para coleta de sangue e de provas
onde eu mesma me saúdo e me rasuro
como se fosse
uma sala toda branca
o sistema de arte
tem horror à sala branca
eu sou branca
meus lábios
não
eles são vermelhos
meus pés
minha voz
minha boceta
os tornozelos
não são brancos
eu sou
a sala é
o sistema de arte
tem horror
ao que não é
também tenho horror
ao sistema judiciário do
sistema de arte
de mim mesma
mas
pensando bem
sou também
o meu próprio espaço aberto
com redes lançadas ao mar
e alamedas, privilégios
todo espaço
poderia ser sem medo
mas as salas
como as saídas
também se fecham
sobre si mesmas
uma sala
é um espaço com limites
todo suporte é limite
há quem suporte
o seu próprio corpo
sua própria sala
sua própria rede e sede de peixe
mas não faço sala
nem para mim mesma
sou também
minha própria sombra
meu próprio insuportável
meu próprio céu
meu próprio espelho
minha própria não-sala
que se sabe
às vezes
e também tem seus limites
medos meandros
eu sou
minhas próprias paredes
sou
minha própria pele branca
meu próprio refletor
meu próprio calendário
minha própria dor
o sistema de arte
me aprecia
como se saboreasse
minhas portas pernas abertas
o sistema de arte
preza
o preço que se paga
àquilo que se dá
ele não tem
horror à pele branca
ele gosta
de muitos nus
mas teme a pele
e tudo o que cheira e goza
e tudo o que sabe
a sua própria sala
não sou
um espaço confortável
sei a sangue e sede
nos cinco hemisférios

+

poema que abre o livro O sono de Cronos, publicado anteriormente na revista Canguru, e revisado para a versão ebook.

domingo, 29 de março de 2020




























Acordou
coberta de likes,
mas sentia
um frio estranho.
São Longuinho nunca falha,
pensou. Vou achar o
pingente que eu perdi
de uma forma assim tão sonsa,
o meu pingo de luz.
E revirava as ondas, as cobertas,
os lençóis, se movia,
mas o frio aumentava
a cada novo like
que ela mesma se dava
diante de nenhum espelho.
Fez força
para não ser em si
só essa luta
entre o visto e o quisto
e não encontrou o pingente
antes das dez da manhã.
Tomou café
perscrutando perfis.
Escolheu uns cinco,
displicente,
enquanto
organizava a agenda.
Deixou a insatisfação
suave da rotina
tomar conta de si mesma
e, quando viu,
fez match com a vassoura
nos cantos das paredes e
arrastou os móveis
lambendo o chão
como se fosse
uma barba espessa, o dia.
Achou o pingo de luz.
Trabalhou, trabalhou, trabalhou,
foi dormir cheia de likes
se cobriu de um cobertor
a mais na cama e pensou
que no fundo não gostava
daquele pingo de luz,
um pingente tão pequeno
apesar de pura prata,
puro ouro,
outro cristal.




















tiraram as palavras
da minha garganta
sem passar pela boca.
disseram que ninguém
pode comer imagens.
para eles
é tudo norma
e haviam escrito
em um muro inexistente
que não se deve
degustar com os dentes,
porque a saliva contamina
o que flui nos sons da fala.
me fizeram despencar
desde o glúteo até o monturo.
fiquei amarrada enquanto
pinçavam, de dentro do peito,
um jeito vermelho vivo.
naquilo que reluz, atmosferas.
daí fiquei com o corpo inchado.
estranho,
pois era justo o dom do muco
que me mantinha leve. o cuspe
pegajoso
tem Hélios por dentro, Jimis Hendrix,
Oiticicas, daimons e daimons
e daimons
que tocam flautas
por dentro. e Sócrates
nenhum.
depois de ultrajada, assim, só via o instante,
a carcaça jogada, um boey de Rembrandt:
aquele aberto, não dissecado, salgado:
aquele colapso das coisas que podem
fazer sentido.
brilha, por dentro, o corpo. por fora
é pós e paetês. tem veias
como cachoeiras.
e sempre foi assim, parangolés,
luz se desplazando
desesperadamente
à procura do que não. e do que corpo.
essas imagens
eu mastigo
como vaca, na paciência
das deglutições.
a proibição
faz parte do precipício
ao qual me jogo
com vontade,
não sem antes me sentar
assim, sobre uma pedra,
comendo as imagens que o mar
vai vertendo
dentro da boca. e deixando
que elas formem calda.
por enquanto,
um vento bate e é bom.
depois
elas se fazem tantas
e tão zanzas, as imagens,
que dá até gosto
vê-las dançar.
as pedras onde me sento
ultrapassam tambor.
é por isso que me arrancam, de mim,
com violência.
aqui, no vento, é muito fácil, parece.
eles retiram as palavras
uma a uma. depois
eu pego a pedra
que me deram
e subo a colina. dói para aprender,
mas
depois do precipício
fica tudo meio ímpeto.
meu corpo aqui, de cócoras
diz o que é: que é rosas, que é frestas
e é poças e águas mansas e
que é corte, às vezes.
coisa.
e na hora em que a gente
menos imagina, arrebenta a onda.



Poema do livro Squirt, editora Terra Redonda, 2019.