domingo, 29 de junho de 2025

Memórias visueiras

Eu tinha quase 33 anos quando iniciei o curso de Artes Visuais. Já possuía uma boa familiaridade com a poesia, bem como com outras linguagens, como o teatro, pois comecei muito cedo a lida artística. E, em seguida, entrei também no doutorado em literatura. 

Era 2012, eu já tinha 2 livros publicados, 3 projetos aprovados em prêmios, e uma experiência longa como performer, oficineira, fazedora de coisas no campo das artes. Cansara um pouco da vida dura de poeta, sempre a instabilidade do serviço autônomo, os projetos constantes, as viagens, o meio cultural com as bestas de sempre e os círculos nos quais às vezes temos de agir como se não tivéssemos outra coisa a fazer, nem contas pra pagar. E eu já tinha enfrentado os ônus todos da minha performance Não alimente a escritora, que acabou na delegacia, após escolta e humilhação pública, em 2010. Não queria mais escrever, não queria mais publicar, nem participar de eventos.

Uma graduação nova é sempre uma forma de respiro e de se obter um passe estudantil, além de que o curso oferecia aulas teóricas de história da arte em todas as fases, além de aulas de performance e de outras linguagens pelas quais eu era apaixonada. 

O susto, porém, começou já na primeira fase, quando fomos apresentados às práticas. Eu não fazia a mínima ideia de como era pintar, nem conseguia diferenciar um pincel reto de um pincel redondo: para mim, todos pareciam retos, todos pareciam redondos. Nem imaginava a diferença entre tinta acrílica, guache e aquarela. Tudo que eu sabia sobre diluentes havia sido aprendido na leitura do rótulo das latas de tinta que eu usava para renovar móveis ou entregar apartamentos alugados. 

O primeiro desenho de observação que fiz na vida foi o da seleção do retorno de graduado, para a qual inscrevi-me contando que não haveria prova prática, apenas teórica, um erro de informação. Havia uma bibliografia com dois títulos e eu os li com muito interesse. Cheguei lá e recebi um lápis HB, sentei na pior posição do objeto, usei a borracha muitas vezes, fiz o que pude para tentar captar a sombra sobre a mesa e, ao perceber que era tarefa impossível (fui naturalmente a última a entregar a prova), escrevi: "Isto não é uma cadeira".

Passei. Eram 7 vagas, 6 passaram, eu inclusive. Quase dei um grito ao telefone, quando a funcionária me informou. E estava apenas começando. 

Foram os melhores anos, preenchidos da alegria de se viver em perpétuo desafio e descoberta. E, se me chateava ter que pegar 3 conduções para ir e 3 para voltar (mais de 3 horas diárias carregando material em ônibus lotados), não diminuía de nenhum modo o fogo de bem-viver daqueles anos, a respiração solar, a motivação e o encanto. Hoje sei que muito da satisfação daquele tempo era a rotina de estudante, a abertura para a construção artística e intelectual, que não se parece em nada com trabalho.

A lâmpada começou a apagar logo depois de me formar, ainda que tenha vivido dois semestres incríveis no atelier de pintura, como professora substituta. Que trabalho fértil, acompanhar o desenvolvimento das pessoas, vê-las produzindo, e pesquisar a linguagem. Aprendi demais. Era muito bom atuar no ambiente onde tive tantos alumbramentos. 

Mas já era 2016, 2017, um pós-golpe cheio de feridas, de danação. Posso afirmar que nunca mais fui faceira daquele modo e que, embora tenha conquistado coisas importantes (um cargo público e estável, outras 9 publicações de livros) eu teria vontade de voltar àquele frescor medroso da cadeira no meio da sala, apenas um objeto sobre a mesa, mas vivo, vivo, trêmulo; e ainda me pergunto como desenhar sua sombra. 

sábado, 28 de junho de 2025

Das #declaraçõesdesnecessárias ao poema de apropriação

Foi no contexto do primeiro momento da pandemia que comecei a realizar as #declaraçõesdesnecessárias, pequenas listas publicadas no Facebook (vide página acima). Uma escrita site specific, que veio no ensejo de um projeto na linha das artes midiáticas, que rascunhei ainda em 2016, bem no final do meu curso de Artes Visuais. 

Naquele momento, o trabalho era intitulado Da linha do tempo e continha uma página no Facebook, na qual eu postava alguns trabalhos produzidos através da apropriação de textos e imagens que apareciam na minha timeline. Eu os torcia com operações de acaso e somas de elementos.

Utilizando um recurso simples de alteração na opacidade, fui criando acúmulos de imagens, realizando digitalmente o mesmo procedimento dos trabalhos de pintura (escritas sobre tela), por meio do qual eu procurava explorar a ligação entre o acúmulo de elementos e a desintegração de sentidos à operação da imagem poética na poesia. A soma de muitas imagens produzia uma fragmentação e desmonte de cada uma e sua reintegração em um ambiente novo, no qual as reinserções produziam aproximações inusitadas, convocando às leituras dos lapsos entre elas. Fazia uma abordagem do conceito de imagem poética a partir de textos de Octavio Paz, Júlio Cortázar e outros autores de crítica e teoria literária, material que pesquisei durante o meu doutorado em Literaturas, defendido no mesmo ano. 




Já os textos de Da linha do tempo eram produzidos a partir da aplicação de uma simples operação de acaso: somava todas as palavras começadas por uma determinada letra, ou coletava a terceira palavra de cada publicação, manipulando de forma simples e brincante o material que me aparecia na timeline. Cheguei a apresentar esse trabalho em um seminário, quando estava no pós-doc em Processos Artísticos Contemporâneos, mas não concluí o ensaio que gostaria de ter produzido então sobre as experiências de escrita de artista na rede social. Antes, queria complementá-las, reforçá-las. O que ocorreu apenas alguns anos depois, no primeiro semestre de 2020, tempo de pandemia anterior à vacinação e ao trabalho insano com o ensino remoto.

Constatados os malefícios e também nossa quase escravidão às redes sociais, naquele momento, propus o exercício de postar todos os dias ao menos 4 declarações desnecessários, durante 40 dias. Foi uma experiência muito bonita, e plena de descobertas. De um lado, a vivência da exposição quase obscena da intimidade; de outro, a observação cotidiana do discurso das redes, e a possibilidade de entender as muitas fricções entre ficções de personas às quais a interface compele e o caráter (pseudo)documental de mídias como foto/vídeo e, é claro, textos de postagens. 

Refleti muito sobre as reações de amigos e leitores que levavam "a sério" afirmações que, por se darem naquele ambiente (naquela "mídia-é-a-mensagem"), carregam consigo já um elemento de ficcionalização, de artifício (tão naturalizado no convívio, que muitas e muitos profissionais do texto bem formados não o percebiam mais, pelo que constatei na experiência). Brinquei com as possibilidades da persona, relacionando-a sempre com a literatura de ficção, as escritas de si, as experiências poéticas já tão familiares ao meu processo criativo, desde o primeiro livro (e seu poema-homenagem à Ana C., por exemplo). 

Ao mesmo tempo em que podia vivenciar esse "pacto da ficção" assim expandido, percebi também que a interface, nesse jogo, possibilitava situações de linguagem com graus interessantes de poeticidade, e nisso me fixei. Desde então, venho procurando um caminho de uso das redes sociais para fins poéticos, busca trabalhosa e compensadora. Desejo ardentemente escrever ensaios sobre isso, conforme o amadurecimento dos conteúdos de pesquisa vai se fortalecendo, na prática.

A composição do Pilsen não compensa (alguns fragmentos foram postados, abaixo) é, de certa forma, um ponto de culminância desse processo, no sentido de que pude unir, ali, esses procedimentos de linguagem que venho testando, buscando, experimentando, através de várias vias. E, se a primeira parte do texto é mais voltada a uma espécie de apropriação das vozes das ruas de um local particular (o centro leste de Desterro, à noite), a segunda parte mergulha na internet para ouvir os textos de vídeos, especialmente os de reacts, gênero de vídeo no qual o autor/influencer comenta um vídeo anterior. 

Meu foco, ali, era ligado às questões da natureza, como se a resselvagização estivesse (está) atuando no discurso. Seria possível ouvir, nesses meios digitais, nas redes sociais, um desejo de floresta? Acredito que sim. Meu poema encerra com a batalha entre dois animais, que reencena esse momento histórico de guerras, cujas fagulhas já se acendem nesses materiais videográficos e textuais há muito tempo.

Sigo na senda da experimentação poética com apropriação de textos vocalizados nas redes sociais. Interessa-me captar o ritmo dessas falas, as vozes que saúdam o tempo, seja em seu elemento mais mortífero (e no poema se impõe também a denúncia), seja em frestas, pequenos sulcos e respiros que poderiam ser cavados do discurso, contra as dores do mundo. Colecionei um sem-número de vídeos de reels do Instagram, para o próximo experimento, já em curso. É muito bom saber que ainda é possível tentar criar, recriar, recrear sentidos, mesmo sob a fumaça espessa desse ano de 2025.