terça-feira, 1 de julho de 2025







 

Artimanhas do alfabeto antropomórfico

Tenho um projeto cuja execução parece cada vez mais difícil: é um folhetim virtual via newsletter. Tenho tentado integrar-me ao Substack para tanto, e timidamente vou procurando compreender aquela plataforma.

Narrado do futuro, o folhetim conta a história da "obscura poeta", esta que vos escreve, e sua obsessão pelo alfabeto antropomórfico de Peter Flöttner. Trata-se de um belíssimo alfabeto composto ali por 1640 (nem se sabe ao certo se é verdade e se foi Pedro, mesmo, o seu criador).

As imagens desse alfabeto me atravessam desde 2014, e estão por toda parte: nas minhas gravuras, pinturas, serigrafias, livros de artista, e na dramaturgia de "Reprodução de presença", texto para uma conferência dançada que compus em 2024, crendo (ai, a ingenuidade) que eu seria capaz de montá-lo este ano. Não foi possível mexer sequer um braço ou um dedo do pé nessa direção, mas a proposta da performance está pronta, e o texto, escrito. 

A dança do espetáculo, em si, seria uma grafia cifrada, os movimentos sempre passando pelas posições dos corpos nas letras do alfabeto. A proposta é a de uma conferência dançada, que seria apresentada em eventos acadêmicos, e tem bibliografia específica. A divulgação incluiria a indicação de leitura prévia de um texto de Walter Benjamin, "O autor como produtor", ou ainda o famoso e rebatido texto sobre a arte e a reprodutibilidade técnica. Entre os autores da bibliografia, destaque também para Hans Ulrich Gumbrecht, que escreveu o importante "Produção de presença", além de outros ensaios que são referências para mim.

Ao chegar, ou previamente, a plateia deixaria seu nome completo em uma lista de presentes, para a composição dos certificados, que de preferência seriam produzidos durante a ação, por estudantes de pós ou pela equipe ligada à organização do evento. Na cena final, seria feita a chamada dos nomes, como uma averiguação de presença em sala de aula, e o público retirar-se-ia aos poucos, cada um respondendo "Presente!" antes de sair da sala com seu certificado de participação. 

A dança ocorreria frente a uma tela na qual seria exibido um vídeo produzido em Power Point. As imagens do vídeo foram pensadas como compilação de diagramas, anotações de leitura, margens de textos e citações. Esse ppt poderia ser alterado de acordo com o público e no decorrer das apresentações/temporadas do espetáculo. Idealmente, um pequeno grupo (estudantes de uma disciplina de pós-graduação, por exemplo) forneceriam seus rabiscou e anotações de aula para a composição dos PowerPoints. 

As imagens que motivaram essa formulação do conceito do vídeo constam no livro "Entre o vento e o peso da página", que publiquei em 2017 pela Medusa, reunindo um conjunto de trabalhos realizados durante o meu pós-doc em Processos Artísticos Contemporâneos, dedicado às escritas. São diagramas, rascunhos, rabiscos e anotações à margem de textos teóricos lidos durante o doutorado. Esses fragmentos são vestígios de aulas e de leituras. 

Ao final da ação, durante a chamada e saída do público, o vídeo mostraria então as referências bibliográficas do espetáculo.




Dançar o alfabeto antropomórfico (mvimentos sinuosos e barrocos, como as linhas dos desenhos), seria uma nova maneira de ativá-lo, propondo um conjunto de reflexões sobre poesia, dança, presença, corpo, e testando possibilidades de expansão da palavra que trazem os mesmos vetores de questionamento tanto dos estudos acadêmicos que realizei nos últimos anos quanto na prática compositiva de poesia por "outros" meios. 

Reparo que o conceito de História, bem como as relações do Barroco em meu trabalho acabaram ganhando muita força, nesse último período (vivi 20 meses de licença voluntária para entender-me, em 2023 e no ano passado. É claro que passei esse tempo lendo, escrevendo, pintando, passeando por mim nas matas e nas lombada que frequentei).

O folhetim seria uma espécie de continuação desse trabalho, na medida em que seria composto por exercícios de escrita periódicos que partiriam da presença do alfabeto de Flöttner em meu cotidiano inventado. Textos radicalmente experimentais, como as tentativas de écfrase que venho compondo no Facebook através da tag #exercíciosecfrásticos, mas com um sentido de narrativa, de continuação. Uma narratividade que dialogaria com o diário e a autoficção, na medida em que, do futuro, esses textos também testemunhariam o cotidiano atual da obscura poeta. A narrativa imitaria, assim, uma certa noção de "feed", mas retomando tempos históricos "outros", com elementos de flashbacks e flashforwards.

A dramaturgia de "Reprodução de presença", que não sei se um dia será montada, ainda pretendo revisar e publicar, nem que seja como capítulo de um livro de ensaios que estou, aos poucos, produzindo. ("Ensaios expandidos" para experimentação literára, digamos assim.) Ando apaixonada pela ideia da liberdade ensaística como ferramental para a concretização de variados projetos artísticos. São trabalhos que poderão existir como livros, ainda que digitais, se for o caso, mas cuja realização é possível, ainda que nas condições mais adversas.

Já o folhetim (que se chamará apenas "Um folhetim") pretendo iniciar via Substack, quando conseguir me relacionar melhor com a plataforma. A intimidade com a interface, nesse caso, é importante, já que se trata de um experimento de escrita site specific, voltado à newsletter como a vivenciamos hoje, na rede.