sábado, 9 de abril de 2016





saber a vírgula do vermelho não é para qualquer um. aliás, um mais um é dois, mais um é três, mais um é quatro, mais um de quinhentos anos e não tem mais vez o vício de recontar as vagas e as histórias que morreram no mar. cada cor tem sua vírgula e algumas reticências. porque o reto se desdobra em dúvidas assim que passa a curva do concreto e o trânsito diminui e se abrem os campos cobertos de nada à nossa frente. sim, é no pleno daquela estrada que deixa a vertigem de verticalidades para trás que a gente mora. por isso somos tão surtados e tão amados e a verdade mora em nós como que de passagem. porque nós passamos por muitas cidades invisíveis. aquela que o morador de rua anunciava quando a gente ia comprar flores no cedo da segunda-feira e se lembrava que tem alma que não dorme de noite. aquela da mímese sem mundo da criancinha que vai para a linha de confronto porque não tem pão. aquela do homem de terno ali na fila da sopa, na calçada portuguesa, onde não se trocam notas de duzentos euros. aquela da índia que não pôde parir porque o governo queria esterilizar só as índias más. aquela do gurizinho que nadou à toa, até sem vida ao chegar de borco na areia, um borco de burca, de buraco, de onde flagraram seu anátema de anjo. aquela das barbas bravas dos guerrilheiros que não sabem meios tons. e tantas tonturas nós tivemos em meio às pápricas  picantes e aos santos altares que deixamos de valorizar todos os temperos e passamos a comer o trigo cru. qualquer um sabe a vírgula do vermelho, porque é a única cor realmente transparente, a onda cumprida ao contrário do tudo que cabe, a cor comprida no ar comprimido da linguagem. 


Telma Scherer, sem título, 2013-2016, pastel e colagem, dimensões variáveis (detalhe)