quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

 





Texto publicado na revista ArteSESC 22.


Em julho deste ano, estive em Pernambuco através do circuito de oralidades do projeto Arte da Palavra, apresentando o trabalho “O sono de Cronos na minha barriga”, uma performance de poesia falada, construída a partir de experimentações literárias em campo expandido. Entre estas, um conjunto de vídeos, que foram exibidos como abertura do trabalho ao vivo; e também o exercício de construção poética em ‘outras’ linguagens artísticas, como a pintura. Foi principalmente a partir dessas experimentações que o conceito da performance se formou e que alguns dos textos vocalizados foram escritos e rearranjados para serem apresentados a viva voz.
Encarei como um desafio e também como uma responsabilidade falar poesia em um estado que é o ventre de tantas manifestações culturais importantes, especialmente na área das poéticas orais, levando um trabalho cuja forma é diversa das práticas de matriz folclórica, apesar de partilhar com estas muitos elementos comuns. “O sono de Cronos na minha barriga” também trazia consigo as marcas de uma pesquisa sobre modos de escrita e de escuta empreendida no âmbito das artes visuais[1], a qual o contaminou com a vontade de colocar em contato a palavra-vento, leve e passageira, plena de sonoridades, e o livro-fardo, ou seja, a tradição erudita, que apesar de, de fato, pesar em nossos hábitos literários com a densidade de um cânone muitas vezes questionável, pode ter também a leveza de uma biblioteca infinita, plena de novas leituras e descobertas. Logo pensei que Cronos, o deus do tempo, devorador dos seus próprios filhos, pudesse pegar no sono, um sono pesado, não apenas para que Zeus restituísse os seus irmãos à vida, mas também para que nesse intervalo, nesse lapso, pudesse ainda renascer outra devoração: a dos antropófagos cantantes e dançantes louvados por Oswald de Andrade e até hoje vivos nas selvas verdes que ainda nos restam e nas selvas de pedra das nossas comunidades, resistentes pela força da sua estratégia poética, de sua presença corporal. Então Cronos, esse deus greco-latino e masculino, poderia dormir “na minha barriga”, aludindo, no trabalho ao vivo, ao corpo feminino que gera a vida e à poesia como “mãe das Artes / & das armas em geral” (Torquato Neto). Uma reflexão sobre a voz poética acabaria então por trazer consigo um questionamento sobre o que é propriamente o tempo e se ele é neutro ou traz consigo determinações das especificidades culturais, de raça, classe, gênero e ancestralidade.
Em duas das quatro apresentações (que aconteceram em Triunfo, Serra Talhada e Petrolina), esses temas foram levantados pelo próprio público, o qual, além de inferir elementos pouco explícitos no trabalho, formulando uma série de perguntas, também me brindou com suas leituras e sugestões, motivando-me a repensar o meu trabalho através desse desvio proporcionado pela escuta ativa do outro. O resultado dessa experiência foi a confirmação de que a diferença da forma final, o contraste dos hábitos de fala, dos sotaques e dos modos de apresentação da poesia no fundo jogam mais a favor do que contra a identificação do público com a performance literária. A palavra-vento da oralidade, não importa se apresentada nas roupagens do livro-fardo ou da tradição folclórica, tem a capacidade de unir escutas e promover pontes também entre gerações, já que a apresentação com maior aderência e envolvimento do público teve na plateia principalmente jovens. Os textos mais experimentais e não lineares foram os mais comentados por eles, que fizeram questão de tocar, ao final, nos objetos cênicos e sonoros utilizados durante a performance.
       
Esse tema da poesia falada vem me acompanhando aqui e ali desde que eu tinha a idade do público adolescente, que foi quando comecei a me aventurar a praticá-la, e levou-me a realizar diversas leituras, culminando no doutorado, no qual abordei a relação entre poesia e performance a partir da obra de Ricardo Aleixo. Aprendi que as hibridizações são próprias da poesia, desde suas origens; que a expressão “literatura oral” comporta algo de redundante (Walter Ong), e que a própria leitura de poesia, ainda que silenciosa, contém uma experiência que é da ordem da performance (Paul Zumthor). A ideia de uma poesia “em campo ampliado” (Rosalind Krauss), por sua vez, vem acompanhando tentativas de compreensão da poesia contemporânea, na qual a intermidialidade é um dado recorrente. A performance poética ao vivo comporta um grande número de camadas fruídas ao mesmo tempo (texturas vocais, uso de imagens, presença corporal, objetos cênicos e sonoros, determinações do espaço da ação, interação, etc), que faz com que esse evento não seja apenas um modo mais atrativo de apresentação do texto escrito, mas também um trabalho artístico que tem consistência própria, sem perder os laços com o que há de propriamente literário em seu acontecimento.
Os três livros de poesia que publiquei foram antecipados por performances, de modo que esta se configurou, no decorrer dos anos, numa espécie de modo de escrita, para mim. Nas múltiplas oficinas que ministrei, muitas delas para o SESC/RS e o SESC/SC, percebi que esse método criativo pode funcionar como um facilitador da comprensão de elementos próprios do poema, inclusive no seu aspecto técnico, como o trato rítmico da linguagem. Em Desconjunto (IEL, 2002) e Rumor da casa (7 Letras, 2008), entretanto, apesar do cuidado e do apuro dos profissionais envolvidos no design gráfico, senti um certo descontentamento com a materialização do objeto livro, que eu sentia não traduzir de modo eficiente esse conjunto de dados presenciais que, nas performances, compõe uma complexidade de camadas. A falta que eu sentia podia ter relação com a formulação do poema por escrito e com elementos pré-determinados do campo livresco (o livro-fardo). A partir de um determinado ponto, senti a vontade de estudar o campo das artes visuais, relacionado com a poesia tanto pela via da performance quanto pela da publicação. Depois da água (Nave, 2014) já foi realizado em paralelo com esse estudo e contém um conjunto de fotopoemas realizados em light painting[2]. A performance “O sono de Cronos na minha barriga”, posterior a esses processos, também é, de certa forma, uma continuidade deles. São vocalizados poemas desses três livros, além de um conjunto de textos cujo processo de escrita é também desentranhado das experiências de pesquisa sobre a poesia no campo expandido. A própria ideia motriz do trabalho surgiu de experimentações desse tipo, incluindo apropriação de impressos.
Foi com o objetivo de angariar material para uma série de pinturas-poemas de 2013 e 2014 que comecei a coletar, nos balaios, um conjunto de publicações "decaídas", ou seja, que não têm valor comercial quase nenhum, e de cujas páginas eu me apropriava para criar situações que, nas telas, pudessem desviar e redimensionar os sentidos de origem dessas publicações. São livros que se tornaram obsoletos por algum motivo: didáticos ultrapassados, romances obscuros, fascículos, volumes soltos de enciclopédia. Encontrei preciosidades em um baú de R$1,00 de um sebo. Foram produzidas cinco telas com a participação desses materiais, entre grossas camadas de tinta, objetos e formas acumuladas umas sobre as outras no suporte. 
Entre os impressos que coletei, chamou a minha atenção uma série de fascículos que abordam a história brasileira, seus “heróis” e as disputas do período colonial, com o título de "Grandes personagens da nossa história", além de um grosso tomo da Enciclopédia Britânica. O fascículo "Jerônimo de Albuquerque" trazia a história do patriarca mameluco, o primeiro a ganhar o título de “cavaleiro fidalgo”, que me remeteu diretamente a Oswald e seu Manifesto Antropófago. Os Albuquerques foram uma família fundadora, comentada por Paulo Prado no Retrato do Brasil, entre outros; José de Alencar, no final de Iracema, anuncia a vinda do Albuquerque que seria ajudado por Martim e Poti na expulsão dos invasores não-portugueses daquelas terras, após o nascimento de Moacir e a consequente morte de Iracema. O fidalgo mameluco está misturado com a própria fundação da brasilidade. Desse fascículo, saíram duas páginas que acompanham o vídeo que deu origem à performance “O sono de Cronos na minha barriga”.
Nele, utilizo também o volume da enciclopédia. “Cronos” é uma performance orientada para vídeo, de pouco mais de três minutos, em tempo-real, sem edição, na qual eu rasgo e literalmente como as suas páginas. Esse trabalho surgiu de uma performance de Paulo Herkenhoff, de 1975, na qual ele realiza a mesma ação com páginas de jornal sobre a censura no Brasil, em plena ditadura. Assim, repensei essa ação para os dias de hoje, abordando também a ausência de uma deglutição efetiva daquele manifesto oswaldiano, ou seja, a falta de uma problematização das práticas aqui consideradas eruditas, além da precariedade das instituições literárias em nosso país. A enciclopédia fala do que está e do que não está: é tanto o livro-fardo de origem europeia que tivemos que deglutir para criar uma cultura letrada no país quanto a ausência desse objetivo efetivamente cumprido, dado o analfabetismo funcional e as baixas médias de livros lidos pelos brasileiros. Ela fala também de um outro tempo, no qual havia a pretensão de reunirmos em uma mesma publicação todos os assuntos sobre os quais se tinha curiosidade. Em tempos de Wikipédia, de Google, e de fragmentação da realidade e dos saberes, não surpreende que esses lindos volumes ilustrados tenham parado nos balaios de R$1,00.
A devoração de um nosso “lado doutor, lado citações” pode continuar sendo uma estratégia de resistência às novas dominações impostas pelo retorno do recalcado que hoje vivemos, e também à compulsão bacharelesca que fundou muitas de nossas instituições culturais. Estratégia que inclui a presença do corpo e a consciência de suas potencialidades. “O sono de Cronos na minha barriga” é ainda a reivindicação da participação do feminino na construção de um tempo de poesia, que é sempre tempo de vigília, ou de despertar.



[1] “Entre o vento e o peso da página” é o título da pesquisa, realizada como estágio de pós-doc dentro do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UDESC, universidade onde atualmente trabalho como professora substituta na área de pintura. A pesquisa é supervisionada pela artista e professora Raquel Stolf e propõe um processo artístico calcado nos contágios, diferenças e assimilações entre a palavra-vento e o livro-fardo.
[2] Fotografia realizada em baixa velocidade, no escuro, na qual se “pinta” com a luz.