sexta-feira, 20 de setembro de 2024




 

O Depois da água fez dez anos e minha intenção é realizar, com esse trabalho, algo semelhante ao que fiz com o Rumor da casa: uma boa revisão e retomada, para reflexões sobre os processos que envolveu, bem como sua disponibilização digital gratuita. Isso estava programado desde os primeiros meses de 2024, quando eu me dedicava à escrita de um texto em prosa, uma novelinha (já concluída), e do poema Pilsen não compensa, que será divulgado em áudio e quiçá também em livro (mas sem nenhuma previsão, no momento). O Depois da água surgiu com performances que se seguiram imediatamente ao trabalho com o Rumor da casa, as primeiras ainda entre 2008 e 2009, com alguns textos rascunhados e recursos diferentes, mais atrelados à vocalização e à música. Cheguei a tocar flauta em algumas (estudava a transversal e teoria-percepção, naquele momento), e cantava alguns poucos trechos, especialmente na abertura. Trabalhei também com alguma percussão corporal e vocal, em poemas específicos, e foi uma performance muito desafiadora e emotiva. Os poemas foram se somando e saíram em livro apenas em 2014, após dezenas de performances. Um projeto envolvendo o livro foi contemplado com o Prêmio Elisabete Anderle 2013 e, assim, pudemos imprimir mil exemplares, em 2014, junto à editora Nave. Dez anos, já! 

Tenho revisitado as imagens e os poemas há algum tempo. Acontece que as enchentes no Rio Grande do Sul abalaram esses planos de trabalhar com a memória do Depois da água, tanto pelos novos sentidos que essa série de imagens poderia gerar, num momento tão sensível, quanto pelos próprios poemas, que fazem referência a Lajeado, minha cidade natal, uma das mais destruídas pelas águas das enchentes. As cores das fotografias, os textos, o próprio título, tudo ganha outra leitura após a enchente, que atingiu, pela primeira vez, a casa dos meus pais, levando consigo objetos, memórias, afetos, e a própria sensação de estabilidade e de segurança que existia naquele espaço e seus pertencimentos.

Não, não consegui, nesses meses que separam o evento das enchentes e a primavera que inicia, olhar para Depois da água, agora, sem convocar as imagens recentes com as quais preciso lidar, e que não são ficcionais. Na última semana, entretanto, dei uma longa entrevista sobre os 200 anos da imigração alemã e, então, li o poema Lajeado, escrito em 2009:

 

LAJEADO

 

O rio é uma cobra marrom

de olhos maldosos.

Sulco escuro cravado no verde.

Seus olhos são as torres das igrejas.

 

O rio serpenteia

os ossos dos homens,

os narizes das mulheres

mais duros do que as pedras.

 

O rio inventou

as casas construídas, as crianças

instruídas a tapa e violinos.

Os socos nas vozes dos loucos,

sempre calados meninos.

O rio teceu de barro

nosso sangue fugidio.

 

O centro do vale é minha casa

e debaixo das suas tábuas

o passado e seus naufrágios.

O rio palpita na cama,

sou criança, temo os ratos do porão

e as vozes do pai, e a mão da mãe.

 

O rio sabe que suas matas não escondem.

Nele moram botas, sofás, pontapés

E um povo tão humano e lhano e europeu.

Assim vocês, e assim sou eu:

teutônicos lacônicos, lances de dados

dos condados da Europa:

forasteiros, filhos das putas,

das lutas com machado e enxada.

Filhos de aventura, filisteus.

 

Depois do desterro

esta terra nos reserva

brilho de céu, água de riacho?

 

Mudo, o rio chora de viés.



Praticamente todo o livro, agora, quando relido, parece se referir às minhas origens nas margens do inundado. Relembrei dos bairros à beira do rio, onde eu ia caminhar, pedalar, e onde meus parentes antigos haviam morado. As casas altas onde os visitávamos, na infância, o barro, a terra, as plantas, e o modo como as memórias que essas incursões na natureza foram reativadas quando passei a morar aqui em Desterro. Passei a lembrar de sensações infantis a partir de cheiros, temperaturas, hábitos. Esse caldo todo foi para o Depois da água, de mistura, mas também para o Squirt e, hoje, tem uma dimensão muito maior. 

Aos poucos, vou fazendo as revisões dos poemas, sentindo novamente seus ritmos e seus espantos. É incrível como o tempo transforma os textos. Talvez por isso, uma gama de leituras sobre filosofia da História e sobre a noção de tempo (conceito trabalhado no meu mestrado) veio parar na minha cabeceira.