O Depois da água fez dez anos e minha intenção é realizar, com esse trabalho, algo símile ao que fiz com o Rumor da casa: uma retomada para reflexões sobre os processos que envolveu e sua disponibilização digital gratuita. Isso estava programado desde os primeiros meses de 2024, quando eu me dedicava à escrita de um texto em prosa, uma novelinha (já concluída), e do poema Pilsen não compensa, que será divulgado em áudio.
Acontece que as enchentes no Rio Grande do Sul abalaram esses planos de trabalhar com a memória do Depois da água, tanto pelos novos sentidos que essa série de imagens poderia gerar, num momento tão sensível, quanto pelos próprios poemas, que fazem referência a Lajeado, minha cidade natal, uma das mais destruídas pelas águas. As cores das fotografias, os textos, o próprio título, tudo ganha outra leitura após a enchente, que atingiu, pela primeira vez, a casa dos meus pais, levando consigo memórias, afetos, e a própria sensação de estabilidade e de segurança que existia naquele espaço.
Não, não consigo olhar para Depois da água, agora, sem convocar as imagens recentes com as quais preciso lidar, e que não são ficcionais. Na última semana, entretanto, dei uma longa entrevista sobre os 200 anos da imigração alemã e, então, li o poema Lajeado:
LAJEADO
O rio é uma cobra marrom
de olhos maldosos.
Sulco escuro cravado no verde.
Seus olhos são as torres das igrejas.
O rio serpenteia
os ossos dos homens
os narizes das mulheres
mais duros do que as pedras.
O rio inventou
as casas construídas, as crianças
instruídas a tapa e violinos.
Os socos nas vozes dos loucos
sempre calados meninos.
O rio teceu de barro
nosso sangue fugidio.
O centro do vale é minha casa
e debaixo das suas tábuas
o passado e seus naufrágios.
O rio palpita na cama,
sou criança, temo os ratos do porão
e as vozes do pai, e a mão da mãe.
O rio sabe que suas matas não escondem.
Nele moram botas, sofás, pontapés
E um povo tão humano e lhano e europeu.
Assim vocês, e assim sou eu:
teutônicos lacônicos, lances de dados
dos condados da Europa:
forasteiros, filhos das putas,
das lutas com machado e enxada.
Filhos de aventura, filisteus.
Depois do desterro
esta terra nos reserva
brilho de céu, água de riacho?
Mudo, o rio chora de viés.
Praticamente todo o livro, agora, quando relido, parece se referir às minhas origens nas margens do inundado.