sexta-feira, 20 de setembro de 2024




 

O Depois da água fez dez anos e minha intenção é realizar, com esse trabalho, algo símile ao que fiz com o Rumor da casa: uma retomada para reflexões sobre os processos que envolveu e sua disponibilização digital gratuita. Isso estava programado desde os primeiros meses de 2024, quando eu me dedicava à escrita de um texto em prosa, uma novelinha (já concluída), e do poema Pilsen não compensa, que será divulgado em áudio. 

Acontece que as enchentes no Rio Grande do Sul abalaram esses planos de trabalhar com a memória do Depois da água, tanto pelos novos sentidos que essa série de imagens poderia gerar, num momento tão sensível, quanto pelos próprios poemas, que fazem referência a Lajeado, minha cidade natal, uma das mais destruídas pelas águas. As cores das fotografias, os textos, o próprio título, tudo ganha outra leitura após a enchente, que atingiu, pela primeira vez, a casa dos meus pais, levando consigo memórias, afetos, e a própria sensação de estabilidade e de segurança que existia naquele espaço.

Não, não consigo olhar para Depois da água, agora, sem convocar as imagens recentes com as quais preciso lidar, e que não são ficcionais. Na última semana, entretanto, dei uma longa entrevista sobre os 200 anos da imigração alemã e, então, li o poema Lajeado:


 

LAJEADO

 

O rio é uma cobra marrom

de olhos maldosos.

Sulco escuro cravado no verde.

Seus olhos são as torres das igrejas.

 

O rio serpenteia

os ossos dos homens

os narizes das mulheres

mais duros do que as pedras.

 

O rio inventou

as casas construídas, as crianças

instruídas a tapa e violinos.

Os socos nas vozes dos loucos

sempre calados meninos.

O rio teceu de barro

nosso sangue fugidio.

 

O centro do vale é minha casa

e debaixo das suas tábuas

o passado e seus naufrágios.

O rio palpita na cama,

sou criança, temo os ratos do porão

e as vozes do pai, e a mão da mãe.

 

O rio sabe que suas matas não escondem.

Nele moram botas, sofás, pontapés

E um povo tão humano e lhano e europeu.

Assim vocês, e assim sou eu:

teutônicos lacônicos, lances de dados

dos condados da Europa:

forasteiros, filhos das putas,

das lutas com machado e enxada.

Filhos de aventura, filisteus.

 

Depois do desterro

esta terra nos reserva

brilho de céu, água de riacho?

 

Mudo, o rio chora de viés.



Praticamente todo o livro, agora, quando relido, parece se referir às minhas origens nas margens do inundado.