terça-feira, 31 de janeiro de 2017




Amo Kokoschka 
e um caderno sem linhas.
Por isso, desespero de dúvidas
e não sei recomeçar.

A mão pesada das manhãs
o vacilo da imagem
a nudez e a exasperação
sempre pesam.

Amo a boneca de pano
que Kokoschka encomendou
como trunfo e tropeço
para a sua solidão.
Amo cada silêncio
que a sombra de Rilke, o rival,
provocou
na sua pequena Alma.

Amo a alma pouca
e namorada 
dos homens traídos
que não cabem em si,
como o desenho 
não quer caber na página.

Amo os ruídos das motos vizinhas
que acompanham o fluxo
de um caderno sem linhas
que não ouso nem riscar.

Com Kokoschka, é tudo 
zonzo assim, é tudo gonzos.
Há pedaços de nuvem
guardados em algum lugar 
de antes do amanhecer.

Começa o dia
e pulsa
essa ardência de gizes,
de lápis, pastéis
sempre poucos para a minha fome.

Kokoschka pinta no céu 
o avião que recém passou.

As espátulas estão limpas, 
o cavalete quebrado,
o caderno acariciado 
como se fosse deus.

Só quem sabe reclamar das bombas
– só quem manda a guerra
um pouquinho mais para lá
pra não riscar um Rubens –
sabe morrer decentemente.

A coragem de Kokoschka é brumas
de um nunca permanecer.

Que barba nenhuma danifique
as cores de um certo quadro
que eu guardo na memória

entre dutches e dunas, 
perfumado de sonho.

Já Kokoschka 
não preciso nem lembrar 
nem lamber.
Ele vive
em cada galho, 
em cada gole de café.

É um mago de mãos brandas, 
o dia, a amanhecer
apesar das tintas.
Kokoschka me diz, de leve:
quem sabe rosnar é o leão
que nunca se olhou no espelho.