em alguns trabalhos, utilizo livros usados ou me aproprio de fragmentos de impressos - tanto páginas com texto quanto com ilustrações, especialmente reproduções de imagens clássicas da história da arte.
foi com o objetivo de angariar material para uma série de pinturas de 2013 e 2014 que comecei a coletar, nos balaios, um conjunto de publicações "decaídas", ou seja, que não têm valor comercial quase nenhum. são livros que se tornaram obsoletos por algum motivo: didáticos ultrapassados, romances obscuros, fascículos de enciclopédia.
encontrei preciosidades em um baú de R$1,00 do calçadão da joão pinto, centro de florianópolis. entre elas, uma série de fascículos que abordam a história brasileira, os "descobrimentos" e as disputas do período colonial, com destaque para a "grandes personagens da nossa história".
foi o fascículo "jerônimo de albuquerque" aquele que mais me embasbacou. os albuquerques foram uma família importante, comentada por paulo prado no "retrato do brasil"; além disso, porém, eu não tinha maiores informações sobre essa figura. como os demais fascículos da série, ele apresenta a história de jerônimo de modo oficialesco, sem críticas à narrativa portuguesa, e nenhum espaço para questionamentos pós-coloniais.
a construção da imagem do herói começa no subtítulo "mameluco e cavaleiro fidalgo" seguido da explicação resumida: "usando sua condição de mestiço, jerônimo de albuquerque entre os índios e os brancos conseguiu viver bem". viveu entre 1546 e 1618, envolveu-se nos episódios de expulsão dos franceses de pernambuco, paraíba e maranhão. "fundou" a cidade de natal, ganhou o título de "cavaleiro fidalgo da casa real" (primeiro mameluco a recebê-lo) e, após a expulsão completa dos franceses, "a paz estava alcançada. jerônimo já pode envelhecer tranquilo entre seus parentes, mas ainda consegue governar a capitania do maranhão por dois anos".
duas páginas desse fascículo acompanham o trabalho "cronos", uma performance orientada para o vídeo que fiz a partir do trabalho de paulo herkenhoff "estômago embrulhado", sobre a qual já fiz postagens abaixo. as páginas do fascículo abordam a habilidade de jerônimo em "convencer" os índios a lutarem ao seu lado e do lado dos portugueses. nada mal dar uma ollhada nesses episódios da narrativa brasileira para compreender o que chamamos hoje de "políticos corruptos" e "democracia racial".
cronos é uma referência que vem de outro lado, deus que devora seus filhos, come-os um a um. um fundo oswaldiano da antropofagia também fica ressoando atrás desse trabalho, a partir do qual comecei a pensar uma nova performance, não orientada para o vídeo, mas a ser realizada ao vivo.
assim nasce "o sono de cronos na minha barriga", trabalho que ainda não foi executado, mas cuja proposta central parte dessas referências e as desdobra em cena, com palavra falada, sons, movimentos, imagens, enfim, um trabalho de performance.
a devoração (de livros, de histórias, de notícias) não é apenas nutrição, mas também traz como consequência o vômito, o clímax daquilo que não conseguimos engolir, a voz, aquilo que explode de dentro do corpo e toma o ar, ganha consistência de coisa, linguagem.
pintura, 2014, detalhe