sábado, 6 de outubro de 2018




     Cronos come os seus próprios filhos. Cronos tem medo. Cronos quer ganhar as eleições, não admite derrota. Cronos é carcerário. Aprisiona a vida na sua barriga, mas não faz nascer. Cronos é bem nascido. Nem preciso dizer que Cronos é branco, ou pelo menos é o que supomos. Ele tem barbas brancas, que nem o Papai Noel. Ele quer mais, mais, mais. Ele inteiro é uma grade, por isso é que se organizam calendários e cronogramas: para conter o velho irado. Foi ele quem escreveu todas as Enciclopédias, porque Cronos é organizado. Ele também quer saber tudo. Cronos é o Google, que faz seus funcionários trabalharem de madrugada. Eles organizam as grades, as grades do cárcere e do calendário. Tudo tem que estar no seu lugar, que é um lugar estreito e comprimido. Cronos gosta de tudo limpo. Limpo, para ele, quer dizer branco. Chão, paredes, teto. Cronos passa panos o tempo inteiro em suas superfícies. Não senta na grama para não se sujar. Não bebe. Pensa que os bêbados são muito barulhetos. Não peida. Para ele, é pecado. Cronos come, come, come. Come árvores, come o sol, como consegue? Ele come e não caga. Ele não tem intestino, só sistemas de triagem, processos de seleção; às vezes está com as inscrições abertas, mas é preciso saber preencher os formulários, clicar 597 vezes em “continuar” e ter uma internet rápida, porque Cronos quer tudo pronto antes de estar pronto. A pressa, para ele, é o momento certo.
     
     Cronos gosta de serras e quando vê as copas despencarem com estrondo ele se sente forte. Está sempre estufado, como um peito de frango entupido de hormônios. Anda pela vida com esse aspecto galináceo e com dores nas costas. Nunca sabe o momento de parar porque ele não quer que nada realmente flua. Cronos se alimenta das doenças curáveis apenas com remédios. Por isso ele prolifera farmácias. Todas com essa luz branca que a ele tanto satisfaz. Todas aparentemente limpas, cheirando a detergente e sem gente. Ele também prolifera carros, de todos os modelos e tamanhos. Tem sempre um modelo novo com os faróis um pouco pequenos, ou com defeitos de suspensão, para que se possa fabricar novos carros. Cronos corre, corre, corre pelas estradas abertas dentro de florestas, pelos trilhos dos trens de ferro que carregam mercadorias, madeiras e minérios. Ferros, ferros, ferros, Cronos come imensas pontes erigidas sobre os lagos; gosta de se gastar em pedágios e em passaportes. Cronos é Cronos, como uma espécie de morte, um pássaro sem voos e um brinquedo quebrado. Ele também se alimenta de palavras, mas só das palavras bem documentadas. Daquelas que são guardadas em livros grossos e obsoletos. Livros que pretendem ensinar, mas não aprendem porque não sabem ouvir. Livros com pouco espaço entre as linhas. Nada é mais morto do que os livros, quando não contam histórias; nada é mais morto do que livros só de verbetes e explicações. Ao invés de rodas, prateleiras retas. Ao invés de ouvidos, cifras. Os livros brancos de Cronos gostam das notas e das linhas retas.

     Nem todos os livros são de Cronos. Ainda bem. Quando não são lidos, os livros que não são de Cronos agonizam. A poeira em suas páginas é um grito deles. Livros que não contam histórias são sem graça, sem corpo, sem pele, sem ouvido e sem pena. O mesmo vale para os livros sem poemas. Os poemas são palavras que Cronos não come. Para ele, são palavras indigestas. Porque delas jorra a voz da poesia: a poesia está sempre em roda e dificilmente em prateleiras. Ela vai do coração aos ouvidos como voam as borboletas. Faz percursos sinuosos no ar, dança nos pulmões. O mesmo ar que entra no corpo de um leitor é inspirado pelo outro. Leitores de poeisa são trocadores de ar. Amam vento. O poema é curvo e carrega esse ar de riso. O poema nunca está sozinho no trânsito, ri das regras e observa minúcias que Cronos não enxerga. O poema baba, cospe e sua. Não precisa ser encadernado. A capa dura é o solado das botas de um livro milico. Livro que cruza o oceano e nos aponta as suas armas. A arma das palavras elogiosas. A arma da narrativa histórica. A arma das grandes personalidades. A arma das notícias falsas. A arma dos aplicativos, das aplicações financeiras e da aplicação de injeções. A arma da compra e venda. A arma dos fascículos e das ilustrações. A arma das boas intenções. A arma das lanternas e da luz branca, branca, branca, dos corredores e das salas. A arma das paredes sem pixo.

     O livro milico não faz revolução. Quem não tem cão, caça com a Enciclopédia Britânica. Para fugir de Napoleão, procura uma brisa nas suas páginas. Engolir, engolir, engolir, é o que pedem as grades de Cronos. Comer pedaços de árvore industrializados e depois cobertos com tinta. Sentir na boca o gosto do pó e da inutilidade. Sentir o estômago embrulhado a cada notícia nova, a cada pesquisa eleitoral, a cada resolução numerada nos aguardando nos porões e nos cadafalsos. Façamos a roda. Para parar de falar um pouco. Para trocar o ar e senti-lo passar de pulmão a pulmão. Para praticar o toque e a escuta, para ver Cronos dormindo, inerte, desapercebido, descartado de todas as manhãs.