os milicianos mataram Marielle,
mas eu estou aqui.
os militares mataram Marighella,
mas eu estou aqui.
são paramilitares, corrigiu o
fugitivo.
concordo com ele, e não fujo.
eu já estava aqui quando mataram
Lorca,
falando seu último poema
na morte, na madrugada
eu morri, mas estou, porque eu
sou aquele que
eles não mataram quando me
fuzilaram
em frente ao paredão das suas
notícias falsas.
mataram, sim, mataram
sessenta por cento
dos homens escravizados
que vinham nos navios, enjaulados,
depois entregavam os corpos ao
relento
uns sobre os outros, os pretos
novos,
como em Auschwitz - nossa Auschwitz,
disse a dona do terreno onde
construíram uma casa, sobre os
corpos,
sobre os ossos
- ela comprou uma casa colonial, nossa
casa, disse,
no centro do Rio de Janeiro, em
cima do cemitério -
- assim são os milicianos, penso, assim,
no fundo das favelas do Rio, penso,
escondidos -
táboas sobre o cemitério, cimento
sobre as fundações
e é por isso que se há de se
exercitar, ele disse,
subir e descer correndo
as escadas e os barrancos, ele
disse,
cada um com a sua arma, ele
disse,
como em Auschwitz? a arma de
Primo Levi
era saber de química
- a minha arma é saber que não
sei se
a minha prima fez o aborto e
a arma dela é achar ruim ter
feito o que
não fez, ou seja, não ter feito o
que fez
era o seu sonho
à sombra da família brasileira
o feto tradicional
considerado abortado
por todos, quando nasce
em escadas e barrancos que se há
de querer subir
assim, correndo,
todo o brasileiro tem que ter a
sua arma
disse Marighella
dizem os milicianos
que só os homens de bem vão
comprar armas
mas os comunistas é que eram
assassinos
dizem, os comunistas que usavam
essas metralhadoras
que se decompunham de engembradas
ao primeiro assalto, assaltavam, eles
terroristas
de primeira página,
de primeira página,
os comunistas atiravam para matar,
eles dizem,
não mataram García Lorca, eles
dizem,
não mataram Marielle, eles dizem,
ela mesma que se matou, era gayzista,
aborteira
e não era como a minha prima
que fazia a família inteira
acreditar
que ainda era tradicional e
não era branca como os pretos que
querem
a volta
da família tradicional
- eu sou a favor, ele disse, a
favor da família,
da vida, do futebol, da mulher, da cerveja, ele disse,
da família de Naa Agontimé, digo,
família de Aqualtune, digo, liderando
os homens
com suas armas, digo, família
Ganga Zumba
sambando na cara da família,
digo,
família de Zumbi, se existe amor
em SP, digo,
ainda existe amor em SC? ainda existem
os nazistas?
quantos mais têm que morrer?
são a favor das famílias de
martírios
são os que matam Marighellas
a mando de um carro
em plena perseguição -
os policiais não viram que eram
só cinco garotos
pobres pretos celebrando - em
plena perseguição –
o primeiro emprego -
os policiais não viram
que matavam Marielle,
que me matariam, os milicianos
não viram
que matavam Lorca, as
mortes na madrugada têm essas
caras, sem os óculos,
as mortes de pretos novos, cinco,
cinquenta por cento
de astigmatismo no meio da
avenida, digo,
mortes abertas, limpas, sãs,
civis, quais?
- ocas como esse soslaio do homem
tradicional
subindo correndo escadas e barrancos,
pesando barras,
desejando anal, desejando um
comandante,
desejando ser aquele que
quer bem a um comandante,
qualquer comandante
que não estava aqui quando me
mataram.
eu já estava aqui quando me
mataram,
e renasci na voz dela dizendo que
os milicianos mataram Marighella,
que muitos morrem,
têm que morrer? quantos mais têm
que morrer?,
mas eu estou aqui, eu já não
estava,
eu já não estou aqui, eu sou
uma espécie de último poema,
fazendo com os fuzilados
o que fizeram com o meu sangue,
digo,
porque eu fervo antes de transbordar.