terça-feira, 31 de março de 2020

eu não sei escrever a máquina
a máquina com a qual escrevo
é meu próprio corpo
escrever é ser sua própria máquina
todo o ser é sua própria máquina
eu não sei maquinar
o sistema judiciário de mim mesma
onde não há provas nem calendário
eu só sei desescrever
meu próprio estado de mim mesma
eu mim mesma má
eu mim mesma máquina
eu mim mesma o eterno calendário
de meses se sucedendo
com dias abertos dias fechados
dias azuis de pés burilados
e dias para balanço
para coleta de sangue e de provas
onde eu mesma me saúdo e me rasuro
como se fosse
uma sala toda branca
o sistema de arte
tem horror à sala branca
eu sou branca
meus lábios
não
eles são vermelhos
meus pés
minha voz
minha boceta
os tornozelos
não são brancos
eu sou
a sala é
o sistema de arte
tem horror
ao que não é
também tenho horror
ao sistema judiciário do
sistema de arte
de mim mesma
mas
pensando bem
sou também
o meu próprio espaço aberto
com redes lançadas ao mar
e alamedas, privilégios
todo espaço
poderia ser sem medo
mas as salas
como as saídas
também se fecham
sobre si mesmas
uma sala
é um espaço com limites
todo suporte é limite
há quem suporte
o seu próprio corpo
sua própria sala
sua própria rede e sede de peixe
mas não faço sala
nem para mim mesma
sou também
minha própria sombra
meu próprio insuportável
meu próprio céu
meu próprio espelho
minha própria não-sala
que se sabe
às vezes
e também tem seus limites
medos meandros
eu sou
minhas próprias paredes
sou
minha própria pele branca
meu próprio refletor
meu próprio calendário
minha própria dor
o sistema de arte
me aprecia
como se saboreasse
minhas portas pernas abertas
o sistema de arte
preza
o preço que se paga
àquilo que se dá
ele não tem
horror à pele branca
ele gosta
de muitos nus
mas teme a pele
e tudo o que cheira e goza
e tudo o que sabe
a sua própria sala
não sou
um espaço confortável
sei a sangue e sede
nos cinco hemisférios

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poema que abre o livro O sono de Cronos, publicado anteriormente na revista Canguru, e revisado para a versão ebook.