domingo, 29 de março de 2020

















tiraram as palavras
da minha garganta
sem passar pela boca.
disseram que ninguém
pode comer imagens.
para eles
é tudo norma
e haviam escrito
em um muro inexistente
que não se deve
degustar com os dentes,
porque a saliva contamina
o que flui nos sons da fala.
me fizeram despencar
desde o glúteo até o monturo.
fiquei amarrada enquanto
pinçavam, de dentro do peito,
um jeito vermelho vivo.
naquilo que reluz, atmosferas.
daí fiquei com o corpo inchado.
estranho,
pois era justo o dom do muco
que me mantinha leve. o cuspe
pegajoso
tem Hélios por dentro, Jimis Hendrix,
Oiticicas, daimons e daimons
e daimons
que tocam flautas
por dentro. e Sócrates
nenhum.
depois de ultrajada, assim, só via o instante,
a carcaça jogada, um boey de Rembrandt:
aquele aberto, não dissecado, salgado:
aquele colapso das coisas que podem
fazer sentido.
brilha, por dentro, o corpo. por fora
é pós e paetês. tem veias
como cachoeiras.
e sempre foi assim, parangolés,
luz se desplazando
desesperadamente
à procura do que não. e do que corpo.
essas imagens
eu mastigo
como vaca, na paciência
das deglutições.
a proibição
faz parte do precipício
ao qual me jogo
com vontade,
não sem antes me sentar
assim, sobre uma pedra,
comendo as imagens que o mar
vai vertendo
dentro da boca. e deixando
que elas formem calda.
por enquanto,
um vento bate e é bom.
depois
elas se fazem tantas
e tão zanzas, as imagens,
que dá até gosto
vê-las dançar.
as pedras onde me sento
ultrapassam tambor.
é por isso que me arrancam, de mim,
com violência.
aqui, no vento, é muito fácil, parece.
eles retiram as palavras
uma a uma. depois
eu pego a pedra
que me deram
e subo a colina. dói para aprender,
mas
depois do precipício
fica tudo meio ímpeto.
meu corpo aqui, de cócoras
diz o que é: que é rosas, que é frestas
e é poças e águas mansas e
que é corte, às vezes.
coisa.
e na hora em que a gente
menos imagina, arrebenta a onda.



Poema do livro Squirt, editora Terra Redonda, 2019.