Eu me ressuscitei
nas cartas do baralho
Petit-Lenormand.
Já não sei amar urso,
Já não sei amar urso,
ainda mais
assim alto, sujo, tesudo,
assim alto, sujo, tesudo,
ferido de lindo —
no fundo, também
no fundo, também
um rato disparatado
no corre-corre sem revolução.
Eram pássaras demais
Eram pássaras demais
as minhas intenções.
Então, no coração destroçado
Então, no coração destroçado
e tonto de tanto esperar,
cavei caminhos de estrela
através deste poema.
E a lua sussurrou
E a lua sussurrou
desenhos do meu dentro
nas bordas do tapete
nas bordas do tapete
em símbolos ancestrais.
A donzela e seus poderes.
Eu vejo
todos os rios da Rússia
A donzela e seus poderes.
Eu vejo
todos os rios da Rússia
congelarem num sorriso
enquanto você vira as páginas
enquanto você vira as páginas
mas não pode
folhear essas paredes.
Não se jogue da torre
folhear essas paredes.
Não se jogue da torre
de mais de 500 anos,
como Maiakóvski, como
o meu amor, que se alimenta
o meu amor, que se alimenta
de todos os desperdícios.
É certo que os poetas
É certo que os poetas
sobem nas mesas dos bares,
fazem escândalo,
fazem escândalo,
falam para as meninas
o que lhes vem, no seu russo,
e, na ira, choram
o que lhes vem, no seu russo,
e, na ira, choram
a dor infinita da usura
que é ter ouvido, enfim,
que é ter ouvido, enfim,
o estalar dos chicotes:
é o fim, entre nós,
é o fim, de novo,
e não é novo, tudo isto,
vem a foice e me ceifa, apesar
e não é novo, tudo isto,
vem a foice e me ceifa, apesar
de termos feito trilhas, apesar
de termos viajado juntos.
E entre os frêmitos dos frios
E entre os frêmitos dos frios
de um telefone a tocar
estica-se a corda que vai
de mim até o seu peito, tenta tocar
um cachorro irrequieto,
de mim até o seu peito, tenta tocar
um cachorro irrequieto,
fantasma para o qual
me dispo
de todos os problemas, perfil
de todos os problemas, perfil
que eu vasculho
para tentar te entender.
E você vem me lamber, nas páginas
para tentar te entender.
E você vem me lamber, nas páginas
pressupostas, sobre o rio,
depois da viagem
e entre mil luas, nas cidades esquisitas,
depois da viagem
e entre mil luas, nas cidades esquisitas,
nos sonhos
forrados de jardins.
Mas acordo
e não é nada assim:
faz frio, são apenas telas,
forrados de jardins.
Mas acordo
e não é nada assim:
faz frio, são apenas telas,
fazem tantas armas,
famílias, casais
igualam-se na busca.
Não dançam mais
o two-step, não se buscam num salão
igualam-se na busca.
Não dançam mais
o two-step, não se buscam num salão
(dois pra lá, dois pra cá). São tantos
os perfis sempre iguais. Não saem das telas.
Eu me inundo
do choro que criei para o rio frio,
os perfis sempre iguais. Não saem das telas.
Eu me inundo
do choro que criei para o rio frio,
onde senti
a água suja
que sai do seu corpo
e não sabe fecundar.
Como um bloco de gelo,
a água suja
que sai do seu corpo
e não sabe fecundar.
Como um bloco de gelo,
nadando no Nevá, as suas falas
vazias de gemido
vazias de gemido
não existem mais
no meu arquivo.
Tudo derrete
sob os sóis da pandemia.
Mas te encontro
Tudo derrete
sob os sóis da pandemia.
Mas te encontro
entre os leões fugidos
para a fauna das paredes, onde a dama
para a fauna das paredes, onde a dama
segura o corno do unicórnio e diz:
venha, vamos para Naufragados,
ainda uma vez, as vênias.
Você se violentou
Você se violentou
nos passos mudos
quando andávamos
como postes
atropelados
quando andávamos
como postes
atropelados
pelos seus medos.
Você não quer, e não se pode ser livre
a não ser nos livros
Você não quer, e não se pode ser livre
a não ser nos livros
onde não há
vírus e vermes.
De nada valeu
vírus e vermes.
De nada valeu
você ser assim alto,
e peludo
e desalmado
quando os fios de internet
estremecem
as páginas imprecisas.
Eu te atiro
na lixeira dos arquivos.
Você baba quando brame,
e peludo
e desalmado
quando os fios de internet
estremecem
as páginas imprecisas.
Eu te atiro
na lixeira dos arquivos.
Você baba quando brame,
trama essas transações
na sua pele de cobra,
na sua pele de cobra,
essa pistola.
Há um mundo de ilusões
Há um mundo de ilusões
tão fáceis de silenciar,
ocultar e bloquear
sempre que se quer
ser sem sonho.
Levo ao zoológico
ser sem sonho.
Levo ao zoológico
um gozo que perdi
quando te trouxe de novo
quando te trouxe de novo
à vida, poeta.
Deixo o urso
Deixo o urso
salivar entre grades,
rondar as janelas, fazer falta.
E o urso polar chama a Ursa,
que chorou todo o Atlântico.
Os animais
já não sentem
esse torpor de asas,
meu poema. Você sangra
e eu danço sem parar, assim,
rondar as janelas, fazer falta.
E o urso polar chama a Ursa,
que chorou todo o Atlântico.
Os animais
já não sentem
esse torpor de asas,
meu poema. Você sangra
e eu danço sem parar, assim,
monotemática,
sem sequer balançar as jaulas.
Com a chave do tempo,
sem sequer balançar as jaulas.
Com a chave do tempo,
ponho em movimento
a minha devoção.
Da constelação,
Da constelação,
eu desço, ergo um picadeiro,
um castelo de cartas,
meu reino
um castelo de cartas,
meu reino
todo adornado
de fios de outro tempo,
revestindo
de fios de outro tempo,
revestindo
o frio do castelo
onde me sento
para ler Sobre isto
e uma revolta
assola
assola
todos os bichos
que chegaram
já congelados
ao mar.