segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

XI – A ponte


Eu me ressuscitei
nas cartas do baralho 
Petit-Lenormand.

Já não sei amar urso, 
ainda mais
assim alto, sujo, tesudo, 
ferido de lindo —
                no fundo, também 
                um rato disparatado
no corre-corre sem revolução.

Eram pássaras demais 
as minhas intenções.

Então, no coração destroçado 
e tonto de tanto esperar, 
cavei caminhos de estrela 
através deste poema.

E a lua sussurrou 
desenhos do meu dentro
nas bordas do tapete 
em símbolos ancestrais.

A donzela e seus poderes.

Eu vejo
            todos os rios da Rússia 
            congelarem num sorriso
enquanto você vira as páginas 
mas não pode
folhear essas paredes.

Não se jogue da torre 
de mais de 500 anos, 
como Maiakóvski, como
o meu amor, que se alimenta 
de todos os desperdícios.

É certo que os poetas 
sobem nas mesas dos bares,
                 fazem escândalo, 
falam para as meninas
o que lhes vem, no seu russo,
                 e, na ira, choram 
a dor infinita da usura
que é ter ouvido, enfim, 
o estalar dos chicotes:

é o fim, entre nós, 
é o fim, de novo,
e não é novo, tudo isto,

vem a foice e me ceifa, apesar 
de termos feito trilhas, apesar 
de termos viajado juntos.

E entre os frêmitos dos frios 
de um telefone a tocar 
estica-se a corda que vai

de mim até o seu peito, tenta tocar
                um cachorro irrequieto, 
                fantasma para o qual 
                me dispo
de todos os problemas, perfil 
que eu vasculho
para tentar te entender.

E você vem me lamber, nas páginas 
pressupostas, sobre o rio,
depois da viagem
e entre mil luas, nas cidades esquisitas, 
nos sonhos
forrados de jardins.

                Mas acordo
                e não é nada assim:

faz frio, são apenas telas, 
fazem tantas armas, 
famílias, casais
igualam-se na busca.

Não dançam mais
o two-step, não se buscam num salão 
(dois pra lá, dois pra cá). São tantos
os perfis sempre iguais. Não saem das telas.

Eu me inundo
do choro        que criei para o rio frio, 
onde senti
a água suja
que sai do seu corpo
e não sabe fecundar.

Como um bloco de gelo, 
nadando no Nevá, as suas falas

                       vazias de gemido 
                       não existem mais 
                       no meu arquivo.

Tudo derrete
sob os sóis da pandemia.

Mas te encontro 
entre os leões fugidos
para a fauna das paredes, onde a dama 
segura o corno do unicórnio e diz: 
venha, vamos para Naufragados,
ainda uma vez, as vênias.

Você se violentou 
nos passos mudos
quando andávamos
                      como postes
                      atropelados 
                      pelos seus medos.

Você não quer, e não se pode ser livre
a não ser nos livros 
                      onde não há
                      vírus e vermes.

De nada valeu 
você ser assim alto,
e peludo
e desalmado

quando os fios de internet
estremecem
as páginas imprecisas.

Eu te atiro
na lixeira dos arquivos.

Você baba quando brame, 
trama essas transações
na sua pele de cobra, 
essa pistola.

Há um mundo de ilusões 
tão fáceis de silenciar, 
ocultar e bloquear
sempre que se quer
ser sem sonho.

Levo ao zoológico 
um gozo que perdi
quando te trouxe de novo 
à vida, poeta.

                      Deixo o urso 
salivar entre grades,
rondar as janelas, fazer falta.

E o urso polar chama a Ursa,
que chorou todo o Atlântico.

Os animais
já não sentem
esse torpor de asas,
meu poema. Você sangra
           e eu danço sem parar, assim, 
           monotemática,
           sem sequer balançar as jaulas.

Com a chave do tempo, 
ponho em movimento 
a minha devoção.

Da constelação, 
eu desço, ergo um picadeiro,
um castelo de cartas,
             meu reino 
             todo adornado
de fios de outro tempo,
             revestindo 
o frio do castelo 
onde me sento 
para ler Sobre isto 
e uma revolta
              assola 
todos os bichos 
que chegaram 
já congelados 
ao mar.