No ano passado, março de 2023, estive em Montevidéu e acabei participando do Mundial Poético com uma performance dançada e cantofalada de um poema do Desconjunto, poema este que eu já havia gravado em áudio e em vídeo durante a pandemia e (re)publicado nas minhas redes.
Trata-se de um texto que revisita o primeiro poema de A teus pés, de Ana Cristina Cesar, que eu conhecia apenas através do teatro (aos 15 anos, fui contrarregra de uma esquete cujo texto era justamente esse poema, mas nunca tinha tido acesso ao livro, antes do fechamento do Desconjunto). Foi ali que aprendi, de alguma maneira, a brincar com a floresta dos jogos subversivos que tanto me agradavam em poesia (dos "vejo ela" aos enjambements).
Ali
onde o mato
alimenta-se de temores
guardo meus
inventos, façanhas.
Façamos as
escolhas: a rua faiscante corta os olhos
onde elaquela
namora os tropeços e os trovões.
Moedas a
desabitam
a engolir suor.
Enrolou-se na
saia vermelha, mora em segundo andar.
Eu cá preferi
um mistério dentro,
em torpor
de
mato.
Coelhos, caçoadas,
grilos morcegos: cada qual canta
a seu jeito.
Às vezes, reúno a orquestra
para mostrar
minha nova invenção:
invento do medo, do arbusto, calabouço.
As folhas imensas
eu resguardo. Deito-me. À noite chorei:
meu travesseiro eram pó de
pó de vento.
Caibo em cada
parte onde escolho um tamanho −
a brincadeira é costurar
cadáveres.
Agora é olhar
as fotos: vejo ela com feridas na perna
a equilibrar
sapatos de agonia.
Então estou melhor: visto quinquilharias
da mata
e a cada dia
invento outra,
outra canção.
Então grilos,
morcegos,
caçoadas, arranjos:
abelhas ao fundo,
-- um piano, no
bordel.
Ainda gosto do meu primeiro livro, principalmente por vê-lo envelhecendo relativamente bem, aos 22, ele que nasceu, na verdade, em uma versão que não existe mais (chamava-se Mundos possíveis em 1998, quando ganhou forma, e os originais são apenas uma das muitas coisas perdidas na enchente do rio Taquari, que inundou Lajeado e a casa dos meus pais, em maio deste ano).
Se meus spino-esquizos "mundos" das imposturas daquela primeira versão foram para o beleléu (há um certo alívio, nisso), os textos mais longos e "proseados" (nunca concordei com essa percepção alheia) tomaram força conforme fui perseguindo a potência das imagens em poesia. Fui me concedendo espaço, traduzindo-me em espacialidades mais vastas e emaranhadas. Um caminho que foi se adensando cada vez mais e que, ao desdobrar-se, sempre me joga de volta a essas experiências iniciáticas e suas muitas perguntas.
*
Fora a questão da performance, da publicação, etc., o que há de mais interessante nesse processo de revisitar/renascer é passar algum tempo testando pontuações, trocas de palavras, cortes e inserções de poemas que, à época, não entraram no livro, que apresentou 49 poemas, no total, divididos em 9 partes. É claro que muitos desses poeminhas que não saíram no livro e não integraram performances foram, também, perdidos, mas os que reinsiro agora estavam no espetáculo Poiesis Desconjunto ou na performance Rumor da casa e foram ditos porções e porções de vezes.
Comecei ontem a postar em minhas redes (Instagram & Facebook) as novas versões dos poeminhas, encarando o problema de como "ilustrá-las". Três postagens depois, descobri que não é tão difícil. Parti da série de autorretratos em pastel sobre xerox + fotografias de detalhes de colagens realizadas esse ano, seja em papel, nos livrins de artista em processo, seja sobre as 12 telas da série Pele & anexos, que eu imaginei nunca mais conseguir olhar, tamanho cansaço me fez concluí-las e arquivá-las, por enquanto. Porque cansa, viu. Tudo cansa. Até descansar. E boa parte desse ano e do meu tempo de licença (não sou das retrospectivas anuais, mas de décadas, como veem) investi no convívio com elas.