segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

I

Isto
é um vírus, vestígios de você
             uivando como louco
nas salas das madrugadas,
uma memória bramindo,
mordendo a minha roupa,
            dizendo: venha, vamos
passear na praia, vamos
   para Naufragados, fazer trilha,
                  mas não vamos
                  de mãos dadas.

Depois, lavamos as nossas máscaras.
                   Acontece
que a água é turva,
elas fedem e grudam na cara.

Além disso, foi tudo,
como sempre, daquela vez,
                   outra vez.

Há meses não acontece nada.

Não há mais rastro de você
                     e hoje
                             vivo
                     na enseada da mente,
                     onde vimos as gaivotas,
                     evitando a gravidez.

Gaivotas, como abelhas,
que sugam o mar.
Meu mel       você renega:
já não ouve
cicios de anêmonas.

Ignora a loba
e ignora
        também
             o meu crime:

nesse ciúme não cabe.

Na cornucópia de horas
em que me nutro de mim
assim
no macio das alfombras
               onde me deito,
               sou gata recém parida,
comedora de placenta.

Por que me expulsa?
Amava os animais?

               Na pele, até hoje,
há uma fresta de você,
               um Raskolnikov.

O seu livro, em russo,
                aberto na cabeceira.
                Os telefones, espertos,
não tocam, me enredam

sem fios
em mim —

você nunca vem, nem viria.
Não há trem.

Não sou bela, nem me chamo Lília,
não me ressuscitarão.

Também não tivemos filhos.
Eu toco o corno
                    do unicórnio
com a minha mente aflita.

Seus cabelos
ondulantes,
mal amados, ressequidos,
se enlaçam ainda em mim, enfim, tapeçaria:

você não aguentaria, agora, nem antes,
nem antes da pandemia,
um minuto
                de pureza
entre os meus gemidos.

Você chilreia, clama, foge,
não para de apetecer.
Um leão faminto e isto,
me obriga, agora,
a escrever:
                    uns versos
                    com latidos,
como um rio de queixas:
                                     meu chorume,
                                     esse lamento. Naufrago.

Das correntes, agora, eu tento
descalçar os punhos,

mas sou levada para a prisão
em Reading,
onde a hora é do lobo, apenas,
do lobo com o lobo com o lobo tal
qual choro quando ouço os uivos tristes.

Nunca a loba, nunca a Ursa Maior,
a que ribomba e ameaça.

Então me atiço, sereia sem sono
              acordando a vizinhança.
Sou pior: chorona, grande, peluda
como um cão sarnento, uma cã,
              acomodo-me nas fotos
que tirei de você, e apaguei,
               e elas estão impressas
               na lembrança

que não para, não para de trazer
o seu corpo naufragado
e jogado do farol, disputando
a carne e a maldade, um corvo
              aquecendo-me, enfim,
no fundo do bar lotado.

Acomodo-me em seu rosto só lembrado,
                 gravado nessa tapeçaria velha
                 onde me deito, enrolando o rabo.

Você sempre esteve atrasado.
Calçado em nuvem.
Meu urso,
um puto.

Já tem outro alguém para amar?
                   Sabe dançar
                   o two-step?

Deste poema se riem, no bar,
                    riem de mim
                    que lato e grito,
                    enquanto você revive
                    um sonho
em brigas, seu asfalto.

São essas cervejas suas,
essas estrias, esses soluços
dos marujos,
meu porco-espinho.

E você ri, também,
das minhas súplicas
por um pouco mais de mim.

A voz, uma corruíra ulula
onde você nada, feroz,
                     e não naufraga.

E hoje os gemidos
e silêncios cortantes
na conversa
são todo o meu alarido.

Você sabe à língua dos ursos,
mal pode ler o que lê, é um tosco,
e escreve apenas
                      os números
                      do desastre.
                       Abelha noturna,
você volta da intempérie,
a página difusa
sobre uma torre de cartas.

Mas não sei mais
qual seu gosto.
Os áudios, apaguei
junto com esses crimes
fáceis de limpar, os poemas.

Você cospe nas esquinas, me escarra, 
teima, e se amarra no poste do prazer.

Você é um monstro, agora,
                         um monstro lindo.

Na sua jugular, no entanto,
um anzol fedido
crispa
as verdades da praia.

Você não diz mais:
ressuscite-me, venha,
não diz mais
vênias e vamos, dê-me ao menos
uma conversa,
           café com conhaque, bem quente

(gaivota perdida
no pulso da família)

                                 não diz
dance, limpe, me livre de mim, me dome,
segure            esses ombros desesperados.

Agora é a hora da loba,
             da loba, somente.

Ninguém quis
              esse ano maldito,
esse cotidiano,
essa quarentena, esse isto
com que me dispo
para as luzes do unicórnio.

E me dopa
com seu sorriso, mora no sono
                   com que me saúdo
antes de morrer.

Guarda-me, agora, enrolada
com seus postais, um trunfo,
mas não passa
de um tapete velho, tudo isso.

       Você me saúda
       como quem tem pena
da pessoa que amava
os animais, mas não aprendeu
a falar a língua dos ursos.